sexta-feira, 1 de maio de 2015

A VELHA CASULA

   Duas coisas moveram-me a republicar este post:  Faz lembrar fatos semelhantes na época das perseguições comunistas, islâmicas na atualidade.
   E a outra coisa é o fato de estarmos vendo celebrações católicas com paramentos exóticos que motiva-nos a duvidar que agradem a Deus. Pois no Antigo Testamento Êxodo XXXIX lemos que por determinação do próprio Deus, as vestes sacerdotais deveriam ser de púrpura e linho fino bordados com fios de ouro verdadeiro. E lá se tratavam apenas de figuras ou símbolos. Aqui no N. T. temos a realidade. A santa Missa não é um teatro, é a renovação do Sacrifício da Cruz. 

 A VELHA CASULA
   - E se for verdade...
   - ... impossível...
   - Como impossível?... se todos os dias ele tem celebrado com aquela mesma casula? ...
   - A mesma??? ... remendada?  ... manchada? ...
   - Justamente!...  a nossa... uma vez na vida, outra na morte...

   O bom padre José Gonzales era um vigário exemplar. Trabalhador, muito piedoso, inteligente, alegre... Mas tinha um defeito: não queria saber de novas casulas brancas! Dia de paramento branco... cena invariável: o vigário entrava para a Missa, enroupado, fatalmente, implicantemente (para alguns e algumas fiéis), na velha e sempre a mesma casula branca - aliás bonita e rica, mas bem manchada e com um grande remendo no meio.
   - Talvez, D. Dolores, seja conveniente oferecer ao vigário outra casula mais a seu gosto...
   - De que vale? Porá de lado do mesmo modo... A outra então não era linda?... grandes rosas de veludo escarlate sobre seda branca... É ceder, minha amiga, não há outro meio... é deixar o bom cura com sua casula remendada...
    E era verdade! Por nada deste mundo, o padre José se decidiria a abandonar a sua velha casula! E nem o dobrara a dedicação daquelas damas, que ciosas do decoro da Matriz, lhe haviam feito novos e ricos paramento brancos. Ele agradeceu, apreciou o trabalho e estreou-os no primeiro domingo.
   Segunda-feira... D. Dolores, piedosa como sempre, lá está à espera da Missa das 5. Entra o Padre e oh! - pesada desilusão - a velha casula... com seu velho remendo... com suas velhas manchas avermelhadas!...
  
Terça-feira... a mesma coisa!... quarta... quinta...
   E só num outro domingo, ou numa outra festa, o vigário se decidia a satisfazer a pedido das zelosas benfeitoras
   - Mas isto é demais, D. Dolores... é até contra a dignidade do Santo Sacrifício!...
   - De certo... Se não houvesse outros paramentos, vá lá... mas... depois de tanta boa vontade nossa...
   - Não há outro meio, D. Dolores... é falar com o Padre Gonzales... Talvez queira ele uma casula gótica, ou... outra... quem sabe? remendada também? ... Coitado... Que gosto sem graça... Assim caminhavam para a igreja, filosofando... estas pobres damas tão dedicadas!!!
   Afinal, chegaram... Empurrando os grossos para-ventos, relancearam os olhos ao altar. E com a mão na pia de água benta, D. Dolores ainda cochichou:
   ... é a velha casula... que remendo feio!...
   - Feiíssimo... horrível... nem olho... senão perco a devoção!...
   Terminou a Missa. Padre e coroinha atravessam vagarosamente o adro e entram na sacristia. Chiam pela igreja os passos miudinhos dos que se retiram, chocalham os rosários que se recolhem. Na sacristia vai se juntando, medrosamente, uma  dezena de moças, D. Dolores à frente. Caladas, cercam à distância o vigário, em misterioso bloqueio.
   O padre José às pressas tira os paramentos, e ainda, desvencilhando-se do amito, exclama sorrindo:
   - Então que aconteceu?... é guerra ou revolução? ...
   Só cochichos, cada qual elege timidamente a vizinha para oradora oficial.
   - Vamos... Bloqueio sem declaração de guerra é proibido... A Liga das Nações não o permite...
     D. Dolores anima-se:
     - Senhor Padre... é só uma consulta, ou melhor, uma pergunta. E, mil desculpas, se o viemos incomodar.
   Nós desejávamos, Padre José, saber o gosto do senhor, a respeito de casula... e então faríamos uma que o satisfizesse... Pois, senhor Padre, parece que nossos paramentos não lhe agradaram... raramente eles têm a honra de servir no altar... E todos têm estranhado, senhor Padre, que o senhor só use aquela casula velha e remendada... que parece não estar conforme ao... ao... - e não querendo ofender nem de longe ao bom vigário, D. Dolores não sabia continuar. Tanto mais que, sem que ninguém esperasse, o Padre José dava sinais vivos de emoção. Que seria? que segredo teria aquele velho paramento? ... O Padre abandonara já o seu sorriso, e sério... como que oprimido por uma angústia secreta... com a voz quase embargada e trêmula murmurou: - Minhas filhas... queridas filhas... deixar a minha casula? ... a minha... é isto que desejam?... - e abaixando a cabeça. - Queridas filhas, o que me pedem é deveras custoso, mas obedecerei ao que decidirem. Escutem, porém, primeiro uma história... depois, façam o que quiserem... o que lhes aprouver... obedecerei em tudo...
   E curvando-se com todo carinho e respeito, beijou uma a uma as manchas da velha casula, deixando embeberem-se na última duas lágrimas irreprimidas:
   - Filhas queridas... tinha eu 23 anos... e tinha uma irmã dois anos mais moça que eu... uma pérola de irmã... um anjo... a minha saudosa Lecy... tão boa... tão virtuosa... tão alegre... amava-me tanto... tanto... - e nas pálpebras do bom padre José, surgiram outras lágrimas rebeldes, escondidas tarde demais para não angustiar suas comovidas e atônitas ouvintes. E só Deus sabe o esforço ingente que fez para poder continuar:
   - Estava eu para me ordenar... e com que amor ela não começou a fazer os paramentos para a minha Primeira Missa!!!... tudo bordado a mão, com todo carinho, seis meses a fio... Era, queridas filhas, esta mesma casula que aí vêem rasgada e manchada... Ia ser uma feliz Primeira Missa!
   Mas... mas começaram as perseguições... as tropas do Governo, como sabem, nada respeitavam: igrejas destruídas, altares e objetos do culto profanados de um modo horrível. Ordenei-me. E fui com o meu Bispo, na véspera da entrada das tropas em nossa cidade. Esperava voltar, serenadas as perseguições e continuar placidamente a vida, ao lado de minha extremosa irmãzinha Lecy. Mas... passam-se três dias... oh! como me foi doloroso!!!... e recebo uma carta do meu irmão Vítor...
   E, a despeito de todos os esforços, um soluço irrompeu-lhe da garganta, congestionado, lancinante... Abriu tremendo nervosamente o Breviário, folheou-o com sofreguidão, tomou um papel amarelado, e sem dizer uma palavra estendeu-o com mãos trêmulas à mais próxima.
   E saiu... era feio um padre chorar na frente de dez moças...
   Ninguém duvidou se se podia ou não , ler a carta... nada fascina tanto como o segredo... E qual seria o mistério da casula?... Sôfregas e trêmulas, abrem a carta...
             "Z ... , 9 de março de 1925.
                        Querido irmão José.
   Somos felizes, imensamente felizes... temos um tesouro que tanta gente almeja e tão poucos possuem... Temos uma irmã mártir! A querida Lecy acaba de partir para o céu, para incorporar-se no número dos que deram a vida na defesa da Igreja! Estou radiante, apesar das lágrimas que não pude conter!
   O fato foi simples: entraram hoje as tropas enviadas pelo Governo; nem parecíamos estar num país civilizado: grupos em desordem, a blasfemar, em correrias, a pilhar e saquear tudo... uma corja de bandidos!
   Chegou a vez de nossa pobre igreja!... Arrombaram as portas, entraram com os cavalos, quebraram todos os altares e imagens, e... calcule caro José... tomando os vasos e paramentos sagrados - e entre eles a sua casula - saíram em sacrílega profanação pelas ruas!!! Horrível José... eram demônios! Das janelas saíam brados de indignação, mas ninguém se abalançava a enfrentar aquele bando de assassinos.
   Pois bem, irmão querido. Lecy viu o que profanava a sua casula. E gritou do portão. Gritou muito, e num sublime heroísmo atirou-se à rua e enfrentou o bandido. Poupo-lhe, meu José minúcias dolorosas. Só isso: quando fui no encalço de nossa corajosa irmã, quando debrucei sobre ela, já agonizava, alagada em sangue, estreitando com força ao peito a sua casula branca.
   Meu querido irmão, ela já partiu para o céu! Temos uma irmã mártir! Que alcance o perdão para seus algozes...
      Aleluia... Te Deum laudamus!
             Teu saudoso e querido irmão
                                                             VÍTOR.
 N. B. Está em minhas mãos a casula, porém rasgada e ensanguentada. - Enviar-lhe-ei logo que for possível".

  D. Dolores parou... e de joelhos, uma a uma , em silêncio, beijaram as manchas avermelhadas da casula... Pareciam brilhantes... grãos de ouro... riquíssimas pérolas... Eram porém muito mais: eram sangue de Mártir!
 - HERÓIS - Pio Ottoni Jor.

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