107. HÁ CERTEZA DO ARREPENDIMENTO.
Alguém poderá dizer: Concordo com o sr. em dizer que ninguém pode ter a certeza de que nunca pecará na sua vida. Mas há uma coisa: o homem que peca, ainda pode salvar-se pelo arrependimento. Assim posso ter a certeza absoluta da salvação, porque tenho a certeza de que, se pecar, hei de arrepender-me e conseguir o perdão de Deus e, por conseguinte a vida eterna.
- E quem lhe dá esta CERTEZA ABSOLUTA do arrependimento?
Primeiro que tudo: como disse São Paulo, não somos capazes nem de um pensamento bom, sem a graça de Deus (2ª Coríntios III-5). O arrependimento é, portanto, uma graça divina.
Esta graça, Deus não a nega ao coração bem disposto. Aquele que procura seguir sempre o bom caminho, aperfeiçoar-se em pensamentos, palavras e obras, portar-se santamente na Igreja de Deus, a qualquer falta, embora mínima que cometa, vê surgir espontaneamente, inquietadoramente, o arrependimento no seu coração. Arrependimento, porque caiu numa falta, a que o seu bom espírito não estava habituado; arrependimento mandado misericordiosamente por Deus, que quer logo acompanhar com a sua graça, fazer soerguer-se o seu servo fiel que teve a infelicidade de cair na tentação.
Mas o indivíduo que começa a recair muito frequentemente no pecado grave, sem fazer o esforço necessário para dele se emendar, vai pouco a pouco se tornando menos apto a receber a graça do arrependimento. À proporção que ele vai abusando das graças de Deus, o arrependimento vai escasseando e, depois de um certo tempo, pode desaparecer por completo. É o endurecimento do pecador, cuja consciência já emudeceu ou só faz ouvir mui fracamente a sua voz.
Além disto, para ser verdadeiro, o arrependimento tem que incluir um propósito firme de deixar o pecado, custe o que custar, e não por um dia ou dois, mas por todo o resto da vida. Ora, há certos pecados que não podem ser deixados sem uma renúncia heroica. É o caso, por exemplo, das amizades pecaminosas, que prendem o coração; do vício da impureza, que tão frequentemente envolve as criaturas, do vício do roubo ou da embriagues. Às vezes é também o ódio que se enraizou no coração e ao qual o cristão nem sempre renuncia facilmente. Há casos, portanto, em que Deus exige do cristão, um sacrifício doloroso: Se o teu olho te escandaliza, lança-o fora: melhor te é entrar no reino de Deus sem um olho do que, tendo dois, ser lançado no fogo do inferno (Marcos IX-46).
Garantir que sempre se terá o arrependimento, seria garantir que nunca se abusará da graça de Deus e que também sempre se tomará a resolução heroica, por mais que ela nos custe, sejam quais forem as tentações que se nos depararem no futuro; e seria sempre uma certeza baseada na presunção, no desconhecimento da nossa inata fragilidade humana.
E é o caso ainda de perguntar: há sempre a certeza de que é sincera a contrição?
Muitas vezes o cristão se julga arrependido e de fato não está. Há no fundo do seu coração ainda uns restos de apego ao pecado e só Deus, que conhece perfeitamente a alma nas suas mais íntimas profundezas, é que bem pode saber se o arrependimento é deveras sincero. Porque a sinceridade do arrependimento não está propriamente na comoção que se sente em determinado momento; pode haver até lágrimas e soluços sem haver o arrependimento sincero, o qual consiste na firmeza da vontade em detestar o pecado de tal modo que não se queira, por hipótese alguma, cometê-lo jamais. É por isto que podemos ter dúvida sobre se estamos ou não na graça de Deus, sem que isto envolva absolutamente dúvida sobre o poder reparador da morte de Cristo, o qual bem sabemos ser infinito, mas dúvida, sim, sobre as disposições da nossa própria alma, as quais também são necessárias para a justificação. Bem-aventurado o homem que sempre está com temor (Provérbios XXVIII-14). Às vezes a falta de arrependimento é tão evidente que não é somente Deus que a percebe, qualquer observador imparcial pode percebê-la também; só a alma se ilude a si própria, tendo-se na conta de contrita, sem o estar de fato. Quantas vezes no confessionário acontece que o penitente vem confessar-se na suposição de que está contrito; e o confessor percebe claramente, pelas próprias declarações do penitente, que ele não possui a contrição verdadeira! Diz-se arrependido, mas não quer tomar as providências necessárias para fugir às ocasiões do pecado; adquiriu bens ilicitamente, mas sente repugnância em fazer a restituição; está empolgado pela paixão, mas não quer afastar-se de vez da criatura que desta paixão é causadora; diz perdoar, mas não quer nem ver a pessoa que o ofendeu etc. etc.
Se uma criatura nestas condições estiver no Protestantismo, está completamente atolada. Em vez de encontrar alguém que a advirta do perigo de condenação em que se encontra, vai deparar-se com um pastor a sugestioná-la de que já está salva, uma vez que tem a fé em Cristo e o arrependimento; a ensiná-la a sentir a "experiência da salvação", ou seja, a doce sensação de que Cristo já a salvou; a decantar as belezas de uma religião tão agradável, tão consoladora que já nos faz gozar neste mundo a certeza absoluta da recompensa celeste...