"O Filho do Homem
veio salvar o que se tinha perdido" (Mt 18, 11).
"Sou Eu, não
temais" (Lc 24, 36).
(Continuação da Conferência do P. Mateo Crawley-Boevey)
Já vos disse
antes: para conhecer-vos deveras, mirai-vos no espelho divino dos olhos de
Jesus. O sol do Seu Coração (Guarda-te de mirar-te, ainda que por uma vez, fora
de meu Coração (Vida y Obras, t. I, p. 93) mostrar-vos-á o que sois e ao mesmo
tempo vos animará com a visão das suas misericórdias.
Lendo com
atenção o Evangelho, acaba-se por compreender que Nosso Senhor vivia sedento
das misérias humanas.
Leiamos
refletindo as passagens do Bom Pastor, do Samaritano, as cenas da Madalena e da
mulher adúltera, as refeições com os publicanos e onde quer que encontremos as
palpitações violentas da Coração misericordioso de Jesus.
Os
publicanos não só existiram, mas continuam a existir, somos nós mesmos. E Jesus
se apressa a buscar-nos, justamente porque somos publicanos.
Compreendamos
portanto, uma vez por todas, que a única maneira de ficarmos quites com o
Médico divino é dar-Lhe o coração, cheio de confiança.
Jamais
conseguiremos que ela seja bastante grande, dizia Teresinha, jamais!
Quantos não
fizeram do Coração de Jesus uma novidade e uma devoçãozinha poética, nascida em
Paray-le-Monial!
Mas não é
verdade.
O Coração de
Jesus autêntico, inteiro, maravilhoso, doutrina substanciosa, vida e
misericórdia, centro dos corações, eu o encontro no Evangelho.
Creio - pois
claro! - nas grandes revelações feitas a Santa Margarida Maria, justamente
porém, o que mais comove nelas e o que mais me convence - depois da autoridade
da Igreja - é a concordância perfeita entre o Evangelho e os manuscritos de
Margarida Maria.
Nem ela, nem
coisa nenhuma me são indispensáveis ao conhecimento daquele Coração que se
revelou a nós de maneira maravilhosa em Belém, Nazaré, no Calvário e que
prossegue revelando-se no Tabernáculo. Paray lançou forte luz e é deveras uma
revelação, seus pedidos e promessas são marcos divinos que dão relevo à
doutrina. Esta, porém, encontra-se a cada linha do Evangelho, suprema e
definitiva revelação do Coração de Jesus.
O
acontecimento de Paray reveste-se, antes, de uma outra importância, certamente
capital.
O Salvador
regressa a essa terra-santa, para condenar, reafirmando o que há havia dito na
Palestina, a heresia horrenda e fatídica do jansenismo.
Resumindo: o
que Nosso Senhor disse em Paray condensamos nesta frase: "Crede em Meu amor, não
temais, sou Jesus; amai-Me, dando-Me o vosso coração, e fazei-Me amado, porque
sou Jesus".
Não era isso
nenhuma novidade. Nos lábios, porém, de Jesus, e depois, firmado pela Igreja,
constituía o anátema de morte contra o jansenismo hipócrita, heresia daquela
época.
Como os
fariseus de Jerusalém, estes mais modernos, não menos repugnantes e venenosos,
não acertaram que um Mestre de Israel, um enviado do Altíssimo, novo Profeta de
uma lei bondosa, manifestasse, como o fazia Jesus, tais preferências, fraquezas
de ternura, para com aqueles por eles desdenhados como escória moral.
E
precisamente para recolher, com mãos divinas, "essa escória" e
convertê-la em tesouros de glória eterna, vinha Jesus, enviado do Pai, para
salvar.
Magnífico e
eloquente escândalo! As criaturas chamadas justas, os condutores das almas e
conhecedores das Escrituras não concebiam um Deus, um Jesus que, sendo quem é,
coma e converse com pecadores e que por eles tenha deixado os anjos do céu.
Jansenistas
já eram essa turba de fariseus soberbos e hipócritas ... E fariseus são também
os idênticos orgulhosos, os idênticos sepulcros caiados que não aceitam como
autêntica e divina a doutrina do Coração de Jesus: "Quero Misericórdia", Misericordiam
volo (Mt 9, 13).
Com que
veemência maldigo esse jansenismo, que parece haver fomentado, especialmente
nas almas mais ricas e generosas, a heresia que, como um vampiro, sorveu-lhes o
sangue da nobreza e da generosidade, dissecou-lhes o coração, paralisou-as.
Converteu em múmias de terror e aparente austeridade, almas gigantes que, se
tivessem amado, se houvessem levantado vôo, se tivessem fixado por horizonte,
não suas misérias, mas a Jesus, e muito mais que a obsessão do inferno, o Amor,
teriam chagado a maravilhas de santidade.
Jansenismo
nocivo, infecto, que se atreveu a converter o Senhor de suma caridade e
misericórdia em um Moloch feroz, num Júpiter tonante, cruel e assustador.
Quantas e quantas vítimas desse sistema sem luz, sem esperança, sem amor,
encontrei em meu caminho!
Mas, demos
graças a Deus, esses miasmas parecem ceder, depois de combate rude; e à escola
jansenista, falta de entranhas, de piedade e de Eucaristia, sucede hoje no
governo das almas a escola do Coração de Jesus, radiante de beleza, rica de
doutrina, entusiasta pela Eucaristia, saturada de confiança evangélica.
Fazemos
agora tremer, sim, mas de amor imenso.
Nunca
poderei esquecer o que me dizia um jansenista, ilustre advogado, que se julgava
católico perfeito: "Não me fale, Padre, de misericórdia; o que eu peço e
quero é que me seja feita justiça seca". Infeliz dele. Se o Sagrado
Coração não houvesse sido mil vezes mais compassivo que rigoroso, já saberia o
pobre a estas horas o que é justiça inexorável, eterna.
Mas Nosso
Senhor vinga-se, sim, à sua maneira porém. E o tal jansenista morreu abraçando
com amor apaixonado uma imagem do Sagrado Coração, e pedindo misericórdia.
Não foram de
estilo semelhante os Apóstolos, antes de receberem instrução e educação, quando
diziam: "Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os
consuma?" (Lc 9, 54).
Não tinham
ainda penetrado no espírito e no Coração do Mestre. Quando o Espírito Santo
abriu-lhes os olhos e suas almas dilataram-se, fizeram reparação, mandando
baixar fogo de Caridade que incendiasse almas e povos no amor de Jesus Cristo. Foi
esse o seu apostolado.
Há daqueles
para os quais, dir-se-ia, não há senão um atributo em Deus: justiça tremenda.
É claro que
Deus, porque é Deus, há de ser infinitamente justo. Mas precisamente por isso, aqui embaixo, enquanto percorremos esse
caminho escabroso de viajores, conhecendo Ele o barro com que nos formou, deve
ser muito mais bondoso que rigoroso, muito mais Salvador e Pai que Juiz
inexorável.
Ele veio e
ficou na Eucaristia e na Igreja, para salvar ... Nós o forçamos,
desgraçadamente, a condenar, obrigamo-Lo a ser Juiz severíssimo.
Se não
houvesse senão justiça, ou se houvesse mais justiça que misericórdia, ou se
fosse tanta a justiça quanta a misericórdia, cá embaixo, no governo providencial das almas, para que então o
confessionário, o sacerdócio, a Eucaristia, e todo o plano mil e uma vezes
prodigioso de redenção misericordiosa?
Para quem
tenha um poucochinho de experiência das almas, a aplicação prática e diária
desse plano redentor constitui o milagre dos milagres, e milagre permanente.
(A Conferência continua no próximo artigo).
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