quarta-feira, 29 de julho de 2020

“FAKENEWS”

 

                                                          Dom Fernando Arêas Rifan*

 

“Cuidado com os falsos profetas: Eles vêm até vós em pele de ovelhas, mas por dentro são lobos ferozes”, nos advertiu Jesus (Mt 7, 15). Profeta é aquele que fala em nome de Deus. Deus é a verdade. E toda verdade vem de Deus. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo14,6). “Eu vim ao mundo para dar testemunho da verdade. Todo o que é da verdade, escuta a minha voz”, disse Jesus a Pilatos (Jo 18, 37).

Sendo Deus a verdade, quem fala em seu nome deve falar só a verdade. Se fala mentira, é um falso profeta. O pai da mentira é o diabo (cf. Jo 8,44).        

A mentira atualmente recebeu um nome jornalístico moderno, um anglicismo: “fakenews”, isto é, notícia falsa. Há mesmo uma CPI das “fakenews”, procurando quem divulga essas falsidades.

A nossa inteligência, pela sua natureza, é dirigida para a verdade e só para a verdade; daí que ela só pode ser atraída pela mentira, se essa tiver algo ou aparência de verdade. Caso contrário não atrairia a inteligência. Por isso, a pior mentira é a que se parece com a verdade, ou que tem um pouco de verdade. E tanto pior quanto mais se parece com ela. Daí que a advertência de Jesus para termos cuidado com os falsos profetas, que, sendo lobos, vêm vestidos de pele de ovelhas, se refere às mentiras que têm aparência de verdade.

Conta-se uma anedota do fulano, que foi preso por fabricar notas falsas, e reclamava com o amigo que o fora visitar na cadeia: “Eu não sei o que houve: fabriquei notas de um real e saiu bem, de dez reais e saiu bem, fabriquei nota de 3 reais e fui preso!” É claro, pois não existe nota de 3 reais. A falsidade só engana quando tem aparência de verdade!!!

E costuma-se dizer que uma mentira é má pela sua falsidade, mas é perigosa pela sua aparência com a verdade. Uma cadeira comum, a que falta uma perna, é má pela perna que falta, mas é perigosa pelas três que tem. Engana e faz cair quem nela for se sentar. Toda caricatura tem algo do caricaturado. Mas também pode ser uma “fakenews”, pois deturpa a pessoa, ressaltando um defeito da pessoa ou tornando-o maior do que realmente é, falseando assim a verdade. A repetição da mentira é também “fakenews”; é a arma da “propaganda”, já preconizada por Goebbels: “uma mentira dita cem vezes torna-se verdade”.  

Assim, os diversos tipos de “fakenews” têm especiais estratégias. É “fakenews”, por exemplo, dar só uma parte da notícia. É “fakenews” dar uma notícia na manchete e dizer coisa diferente no corpo da notícia. É “fakenews” manipular o número de pessoas, mostrando só uma parte da foto. É “fakenews” dar ênfase a um pronunciamento ou a uma sua parte, ênfase que na realidade não tem. É “fakenews” caricaturar alguém ou uma notícia, ressaltando maliciosamente aquilo que se pretende criticar. É “fakenews” dar só uma versão ou uma parte da notícia. Fatos são fatos, mas a versão dos fatos pode ser enganosa. É “fakenews” manipular ideologicamente os fatos ou parte deles, para influenciar as pessoas.

           

        *Bispo da Administração Apostólica Pessoal

                                                                         São João Maria Vianney

                                                                     http://domfernandorifan.blogspot.com.br/


segunda-feira, 27 de julho de 2020

TIBIEZA



      Primeiramente, que é tibieza? "É uma espécie de relaxamento espiritual, diz Tanquerey, que amortece as energias da vontade, inspira horror ao esforço e conduz assim ao afrouxamento da vida cristã. É uma espécie de languidez ou torpor, que não é ainda a morte, mas que a ela conduz, sem se dar por isso, enfraquecendo gradualmente as nossas forças morais". Dificilmente acontece isto com os neo-convertidos e com os que já chegaram a uma união maior com Deus. Manifesta-se, sobretudo em almas que estão em progresso na vida espiritual, isto é, na via iluminativa. São, geralmente, almas piedosas e até fervorosas, que, tendo deixado o pecado, não vigiaram o suficiente para arrancar do coração os apegos a coisas mais leves, mas que, na verdade são afeições ainda remanentes dos seus pecados passados. Eis o que a este respeito diz S. Francisco de Sales: "Filotéia, uma vez que aspiras sinceramente à devoção, não só deves deixar o pecado, mas é também necessário que teu coração se purifique de todos os afetos que lhe foram as causas e são presentemente as consequências; pois, além de constituírem um contínuo perigo de recaídas, enfraqueceriam a tua alma e te abateriam o espírito... Essas almas, que, tendo deixado o pecado, são tão tíbias e vagarosas no serviço de Deus, assemelham-se a pessoas que têm uma cor pálida; não é que estão verdadeiramente doentes, mas bem se pode dizer que seu aspecto, seus gestos e todas as suas ações estão doentes. Comem sem apetite, riem sem alegria, dormem sem repouso e mais se arrastam do que andam. Deste modo aquelas almas, em seus exercícios espirituais, que nem são numerosos nem de grande mérito, praticam o bem com tanto dissabor e constrangimento que perdem o brilho e graça que o fervor dá às obras de piedade" (Filotéia, parte I, c. VII).

   Apresento algumas comparações para que se possa compreender bem em que consiste este grande empecilho na vida espiritual. Comparemos a tibieza a uma tuberculose pulmonar. A pessoa acometida desta doença, vai-se definhando aos poucos. Assim faz a tibieza na alma que era fervorosa.  A tibieza pode ser comparada à rêmora. É um peixe marítimo relativamente pequeno  e munido  de uma espécie de ventosa em cima da cabeça, que o prende no casco de embarcações, estorvando-as, quando em cardume. Assim, a tibieza, pelos muitos pecados veniais, impede que a barquinha de nossa alma prossiga em demanda do porto da vida eterna.

   Comparemos a vida espiritual a água num vasilha que é levada ao fogo. Dois fatores fazem esta água esquentar e logo ferver: o fogo bem forte, bem atiçado e a tampa da vasilha hermeticamente fechada. Se houver um descuido com uma destas duas coisas e, mais ainda, com as duas, a água pára de ferver, e chega a um ponto que fica morna, isto é, nem quente e nem fria. Assim, comparando: O fogo que esquenta a alma é o amor de Deus. Este fogo é intensificado pelos exercícios de piedade bem feitos: meditação, leituras espirituais, oração da manhã e da noite, exercício da presença de Deus pelas orações jaculatórias, o santo Terço, o cumprimento fiel dos deveres de estado etc. A tampa bem fechada é o recolhimento. Pois bem, se a alma fervorosa descuida destas duas coisas, forçosamente mas aos poucos, vai perdendo o fervor do amor de Deus. Comete muitos pecados veniais exatamente em fazer por rotina e negligência, estas coisas que a colocariam sempre em maior comunhão com Deus, a fonte da vida sobrenatural. As forças e as luzes que vinham do divino Espírito Santo vão diminuindo. A alma torna-se morna na sua vida, porque ou não põe a lenha destes exercícios, ou põe lenha verde ou podre. Quer dizer, entrega-se voluntariamente às distrações nas orações; e está também dissipada pelas as coisas do mundo. E nunca até hoje, foi tão grande o perigo da dissipação pela TV, celular e Internet. O cuidado hoje contra a tibieza deve ser triplicado. Sobretudo, deve-se ter muito cuidado para não criar um fanatismo por jogos e notícias. Aqui estamos falando de pecados veniais. Mas diz a Sagrada Escritura que se a gente desprezar as coisas pequenas, aos poucos se cai nas grandes. A pessoa perde um tempo que poderia ser empregado no estudo do Terceiro Catecismo, em leituras espirituais, e mesmo em mais orações. Além disso se indispõe para os raros momentos que ainda sobram para conhecer melhor as verdades da fé, e para fazer suas poucas orações. Não queremos dizer que não sejam legítimos e até necessários alguns recreios honestos, mas quando muito demorados são contraproducentes. Em lugar de descansar o espírito, cansa-o, indispondo-o para a boa leitura e para a oração.

   O que a Sagrada Escritura diz da tibieza é realmente assustador: "Conheço as tuas obras (diz Deus ao bispo de Laodicéia), que não és nem frio nem quente; oxalá foras frio ou quente; mas, porque és morno, nem frio nem quente, começar-te-ei a vomitar da  minha boca. Tu dizes: sou rico, e enriqueci-me, e não conheces que és um coitado e um miserável e pobre e cego e nu" (Apoc. III, 15 - 17). Na verdade, a tibieza como que causa náuseas ao próprio Deus, porque envolve ingratidão e fraude para com Ele:"Maldito o homem que faz a  obra de Deus fraudulentamente" ( Jeremias XLVIII, 10). Além disso, é muito difícil o tíbio se converter.  A alma que estava na altura do fervor e cai de repente num pecado mortal (como aconteceu com Simão Pedro) leva um grande susto e logo procura se reerguer. Quando vai descendo aos poucos por uma ladeira escorregadia (a tibieza), termina chegando em baixo sem perceber, isto é, relaxa a consciência.

Uma barca tem que estar sempre impulsionada pelos remos. Parando estes, ela é levada pela correnteza. Um fogo deve ser sempre atiçado, do contrário, termina se apagando. Vejamos os remédios da tibieza:
·         São receitados pelo próprio Nosso Senhor Jesus Cristo: "Aconselho-te que me compres ouro acrisolado no fogo, para te enriqueceres (o ouro da caridade e do fervor), e roupas brancas, para te vestires e não aparecer a vergonha da tua nudez (pureza de consciência), e um colírio para os teus olhos, para poderes ver (a franqueza consigo mesmo e com o próprio confessor). Porque aqueles que eu amo, repreendo-os e corrijo-os; arma-te, pois, de zelo e faz penitência. Eis que eu estou de pé à porta, entrarei em sua casa e cearei com ele e ele comigo" (Apoc. III, 18-20). NB.: É continuação do texto anterior supra citado do Apocalipse, mas os parênteses são do teólogo Tanquerey.

·         Para muitas almas que caíram na tibieza, a melhor farmácia para se adquirir os remédios indicados pelo próprio Jesus, é um retiro espiritual.

·         Para os que não podem ir a esta farmácia, receito-lhes alguns remédios caseiros: 1º - Esforçar-se em casa mesmo, para meditar sobre os novíssimos; 2º - Diminuir, o quanto for possível, o acúmulo de afazeres cotidianos. Alma querida que quer voltar a ser fervorosa, eis o meu conselho: se não puderes cumprir bem todos os teus deveres, por serem demais, desista de alguns; 3º - Por amor a Jesus, deixe de lado por algum tempo o seu celular, sua Internet e a TV (caso infelizmente a tenha) e você vai verificar como sua vida espiritual vai voltar a ser fervorosa. E compreenderás que vai ser necessário arrancar estes olhos para poderes entrar no reino do Céu.

·         Segundo o teu estado de vida, procure guardar ao máximo o silêncio, sem é claro, faltar com a caridade para com o próximo, sem singularidade. No mínimo, falar menos. Tenho certeza que você nunca irá se arrepender de o ter feito.

·         Não deixar os exercícios espirituais que fazia antes da tibieza chegar. E isto mesmo em meio a aridez e distrações que persistirão no início do tratamento. Isto é normal como acontece com os efeitos colaterais de certos remédios.

·         Procurar adquirir o hábito de pequenas mortificações exteriores, como aquela supra recomendada: aposentar o celular e a internet. Depois, à sua hora, virão as mortificações interiores. Afastastes-vos de Deus, cedendo às inclinações da natureza; aproximai-vos d'Ele, reprimindo-as.

   Mas, caríssimos, não esqueçamos que para conseguirmos todos os remédios da tibieza, só há uma moeda aceita no banco de Deus: a ORAÇÃO. E primeiro, a oração pedindo a graça de a fazer bem: "Senhor, ensinai-nos a orar" (S. Luc. XI, 1). Orai, portanto, por mais aborrecimento que vos cause a oração e apesar da sua aparente inutilidade: humilhai-vos diante de Deus. Ele quer a vossa cura, mas quer que a peçais. Amém!
  

domingo, 26 de julho de 2020

OITAVO DOMINGO DEPOIS DE PENTECOSTES

        Evangelho segundo São Lucas XVI, 1-9. 

LeituraEpístola aos Romanos VIII, 12-17.
   Caríssimos e amados irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo!

   No Santo Evangelho de hoje, através da parábola do "Feitor infiel" Nosso Senhor Jesus Cristo quer exortar-nos, a nós os "filhos da luz" a não sermos menos hábeis em olhar pelos interesses eternos do que "os filhos das trevas" em assegurar os bens deste mundo.
   Sob a imagem de um ecônomo, que chama infiel, o Divino Mestre nos faz ver o cuidado que devemos ter em assegurarmos uma boa morte, e como o melhor meio de a conseguir é a prática das obras de misericórdia. Certo ecônomo, diz Jesus Cristo, ao serviço de um rico proprietário, vendo que ia ser despedido, por causa da sua má administração, recorre a um expediente injusto, porém hábil, a fim de converter os devedores de seu amo em amigos que, no momento oportuno, o recebam em sua casa. Assim o pecador deve empregar todos os meios para ser recebido, depois da morte, nos tabernáculos eternos, ou seja, no Céu. Tal é o sentido da parábola que lemos em São Lucas XVI, 1-9.
   O homem rico é a figura de Deus, Senhor absoluto de todas as riquezas que possuem os anjos no céu,,e os homens na terra. O ecônomo é todo o homem que está neste mundo. Se o homem aqui na terra é considerado proprietário diante dos outros homens, não o é diante de Deus, mas apenas um administrador, um simples ecônomo. Tudo o que possuímos, de fato, não nos pertence, pois tudo nos foi confiado por Deus, a quem havemos de prestar contas.
   À hora da nossa morte, encontraremos um livro onde se acha notado, com rigorosa precisão (um copo d'água, uma palavra ociosa etc.) todo o nosso ativo e todo o nosso passivo; todo o bem e todo o mal. 
  Como o ecônomo infiel, seremos também acusados, diante de Deus, pelo demônio e pelos nossos próprios pecados.
   O pecador é chamado ao tribunal de Deus pela voz dos superiores, pelos bons exemplos que recusa imitar, pelos conselhos e salutares avisos dos seus amigos, pelas inspirações da graça, pelo remorso da consciência e, finalmente, pela morte que se aproxima lentamente e cai de súbito sobre ele. A vida inteira nos é concedida para regular as nossas contas, e podemos fazê-lo pelo exame de consciência e pela confissão sacramental. 
   -Presta-me contas da tua administração. Esta intimação será feita, um dia, a cada um de nós, à hora da morte. Para uns será horrível, como o prelúdio do castigo; para outros será cheia de consolação, como o anúncio da recompensa - Depois da morte já não podemos exercer a nossa administração, é já passado o tempo de expiar os nossos pecados. É agora, enquanto temos vida, tempo e saúde, que devemos refletir - Que hei de fazer? Agora não nos faltam os meios, e se refletirmos seriamente, logo encontraremos a resposta - Já sei o que devo fazer. No dia do Juízo o pecador dirá também - Que hei de fazer? mas será um grito de desespero, a sua perda é irremediável.
   Trabalhar cavando a terra, exposto ao sol e à chuva, é o penoso trabalho da penitência e da mortificação. Mendigar é orar, é suplicar o necessário para alimento da nossa alma.
As sete obras de misericórdia corporais
   Se, porém, não temos força ou coragem para as duras penitências da vida cristã, se não temos tempo e vagar para longas orações, podemos sempre praticar outras boas obras, fazer esmolas ainda mesmo do pouco que possuímos. Qual o pobre que não pode dar a outro pobre o óbulo da viúva ou ainda um copo d'água? A esmola é, pois, um grande meio de salvação, sem excluir, todavia, a penitência e a oração que, segundo as circunstâncias, nos for permitido fazer. 
   Caríssimos, vê-se bem a astúcia deste mau servo da parábola. Perdoando a uns mais do que a outros, toma precauções para que não seja descoberta a sua fraude. Além disso, ele conhecia talvez as disposições de cada um, e procede com toda a prudência, habilidade e espírito de previdência. Enquanto o ecônomo não tinha o direito de dispor dos bens de seu amo, nós recebemos de Deus, não somente uma permissão, mas ainda uma ordem formal de distribuir com largueza e liberalidade, os bens corporais e espirituais que Ele nos confiou. Quis o Divino Mestre fazer-nos compreender, diz Santo Agostinho, que se aquele mau servo é elogiado por saber acautelar os seu interesses, com mais razão seremos nós agradáveis a Deus, se, conformando-nos com a lei divina, praticarmos as obras de misericórdia.
   Jesus fala de "riquezas injustas",isto é, enganadoras, mentirosas. São assim chamadas porque são às vezes mal adquiridas, ou porque são mal empregadas, e, neste sentido, são a fonte de muitas injustiças. Em si mesma, porém, a fortuna é um dom de Deus, é uma graça que convém aproveitar para a nossa salvação, proporcionando-nos a amizade dos pobres, conquistando-nos o coração de Jesus que neles se incarna e representa. 
   Caríssimos e amados fiéis, quem tem pouco, dê pouco; quem tem muito, dê muito. Lembrai-vos que os bens desta terra em vossas mãos são perdidos para a eternidade; mas depositados nas mãos dos pobres e dos amigos de Nosso Senhor, frutificarão ao cêntuplo, resgatarão vossos pecados, e vos valerão o paraíso. Amém!
   

sábado, 25 de julho de 2020

A ORAÇÃO É O TERMÔMETRO DA VIDA ESPIRITUAL



   A oração é a pedra de toque da perfeição cristã; é a característica dos santos. E, por isso, é o termômetro do fervor de uma alma. Entendemos aqui a oração mental, porque, segundo Santa Teresa d'Ávila, a oração vocal é também mental.

   Para realizarmos o que Jesus Cristo nos preconizou: "Sede perfeitos como vosso Pai do Céu é perfeito" (S. Mat. V, 48), temos que orar e procurar fazê-lo o melhor possível e sempre: "É preciso orar sempre, e nunca deixar de o fazer"  (S. Luc. XVIII, 1). Para se chegar à perfeição na vida cristã, é necessário, primeiro, ter dela, um desejo ardente. Pois bem, oramos porque desejamos tornarmo-nos melhores na vida espiritual.

   Segundo, a oração deve ser antes de tudo um exercício de amor. Precisamos conhecer a Deus, para o amarmos; conhecer a nós mesmos, para nos renunciarmos. Pela oração mental, adquirimos este duplo conhecimento; e pela oração vocal e mental, pedimos o amor de Deus e o desapego de nós mesmos e das coisas transitórias deste mundo.

   Terceira coisa necessária para atingirmos aquele ideal de perfeição mostrado por Nosso Senhor Jesus na sua vida e na sua doutrina: precisamos unir inteiramente a nossa vontade à santíssima vontade de Deus. Pois bem, toda boa oração contém explicita ou implicitamente um ato de submissão ao Supremo Senhor de todas as coisas.

   Por conseguinte, para avaliarmos o nosso progresso na vida interior, temos que olhar o termômetro da oração. Pela vida de oração poderemos saber se a alma está fria, morna ou quente, espiritualmente falando. Na verdade, a vida cristã é morte e vida: morte do velho Adão, morte do pecado, morte de nós mesmos; e neste sentido dizia S. Paulo: "Morro todos os dias"  (I Cor. XV, 31). Mas também é vida: vida para Deus, vida por Jesus Cristo, o novo Adão; participação da própria vida de Deus pela graça santificante. S. Paulo dizia; "Minha vida é Jesus". 

    Pois bem, caríssimos, morremos para o pecado e vivemos para Deus à medida que progredimos na vida de oração. Então consideremos:
·         Uma alma que simplesmente não reza, está gelada como um cadáver. E realmente está morta. São as pobres almas que estão estagnadas no pecado mortal. Ou não sentem, ou abafam os remorsos da consciência. Só se converterão e poderão se salvar se houver quem reze e faça penitência por elas. Certamente Nossa Senhora em Fátima se referiu a tais almas quando disse: "Há muitos que se condenam, porque não há quem reze e faça penitência por eles". E Santo Afonso disse: "Quem não reza, se condena".
·         Uma alma que reza maquinalmente, sem atenção e quase sempre visando interesses temporais, resiste muito pouco ao pecado mortal. Seu arrependimento na confissão é muito fraco e, diante de Deus, talvez pode não ser suficiente para alcançar o perdão. Esta alma é fria, só tem um verniz ou rótulo de cristã.
·         Uma alma que regularmente faz a sua oração, mas sem fervor, ela combate o pecado mortal, mas fracamente. E quanto aos pecados veniais não faz nada de sério para os evitar. Seu arrependimento, porém, dos pecados mortais é sério e suas confissões, sinceras. Diríamos que esta alma está começando a se esquentar, mas, por enquanto, tem uma piedade medíocre. (NB.: Não disse MORNA, porque, na vida espiritual, alma morna é aquela que, tendo chegado a ser piedosa e até fervorosa, descuidou e esfriou-se na sua vida de fervor. É a terrível TIBIEZA, sobre a qual falarei, se Deus quiser em outra postagem). Esta alma deverá tomar todo cuidado para melhorar a sua oração; caso contrário, a tendência será esfriar-se cada vez mais.
·         Uma alma que faz bem os seus exercícios de piedade, faz a sua meditação de manhã, mas não tem regularidade nela, abandonando-a facilmente diante de muitas ocupações ou quando não sentir consolação espiritual. Esta alma combate lealmente o pecado mortal. Foge habitualmente das suas ocasiões. Seu arrependimento é vivo e até faz penitências para reparar os pecados mortais. Começa também a combater os pecados veniais, mas o arrependimento deles é muito superficial. Diríamos que esta alma é quente, mas com altos e baixos. Tem uma piedade intermitente.
·         Uma alma que faz religiosamente a sua meditação (e esta é menos discursiva e mais afetuosa), ela não comete mais pecado mortal. Talvez ainda caia nele mas só em algumas circunstâncias repentinas e violentas. Procura, outrossim, combater o pecado venial e raramente cai voluntariamente nele. Quanto às imperfeições, só tem um fraco desejo de combatê-las. Esta alma é verdadeiramente piedosa. Está quente espiritualmente, mas não tanto ao ponto de ter o fervor.
·         Consideremos agora uma pessoa que faz todos os dias a sua meditação e até levanta-se mais cedo para fazê-la o melhor possível. Sem prejudicar os deveres de estado, gosta de prolongá-la. Não é mais meditação discursiva onde entra mais a inteligência, não. É uma oração mais afetiva e até de simplicidade (depois veremos em que consiste). Pois bem, esta alma nunca comete pecado venial deliberadamente, mas só por surpresa e sem advertência. E quando isto acontece, tem grande arrependimento e procura repará-lo seriamente. Para agradar a Deus, também combate energicamente as imperfeições. Faz frequentes atos de renúncia. Temos aí uma alma bem quente espiritualmente, ou seja, verdadeiramente fervorosa.
·         Olhemos agora as almas que vivem em oração, isto é, além das momentos reservados à oração, transformam seus trabalhos e o cumprimento dos seus deveres de estado, em oração. Vivem na presença de Deus, e tudo fazem com intenção reta e pura de agradar a Deus. Fazem frequentes orações jaculatórias com grande amor a Deus. Estas almas têm sede de renúncia, de desapego, de amor divino. Têm fome da Eucaristia e desejam ardentemente o Céu. Já chegaram à contemplação (contemplação adquirida, oração de simplicidade, de quietude). Como Deus não se deixa vencer em generosidade, Ele concede-lhes, ou melhor pode conceder-lhes (segundo os seus desígnios sobre cada alma), purificações passivas, o grande tesouro da CONTEMPLAÇÃO INFUSA. (Depois veremos em que consiste). Pois bem, estas almas estão sempre prevenidas contra as imperfeições. Sobrevêm sim, mas só com semi-advertência. Chegaram a uma perfeição relativa.
·         Finalmente, na SANTIDADE,  a oração é tão perfeita que até as imperfeições são mais aparentes que reais. Na verdade, neste cume da montanha da perfeição, a alma está tão unida a Deus, que sua oração já é a mesma união de amor com Deus. S. João da Cruz, baseado no livro dos Cânticos, a este estado de união de amor a Deus,  dá o nome de "Matrimônio Espiritual". Segundo disse Jesus, os cônjuges são uma só carne; e S. Paulo na 1ª Epístola aos Coríntios, VI, 17, diz: "Ao que está unido ao Senhor é um só espírito com Ele". Unida a Deus, a alma forma com Deus um só espírito, um só coração, uma só vontade; não é mais ela quem vive, é Deus quem vive nela; é Ele quem age, quem opera por ela, (dócil instrumento em suas mãos paternais). E assim, Deus realiza nela e por ela seus desígnios de amor.  Por isso mesmo, com a morte, estas almas passarão diretamente para o Céu, sem necessidade de Purgatório. Verdadeiramente os santos vivem a vida de Jesus. Amam a Deus e ao próximo por Deus: amam os justos por serem filhos de Deus, amam os pecadores para que o sejam. Amam os inimigos para imitar a Jesus. A alma consumada em santidade pode dizer com S. Paulo: "Vivo, mas não sou eu quem vive, é Jesus que vive em mim".

   Caríssimos, é isto que o nosso Pai do Céu, a Bondade Infinita, deseja para todos os seus filhos: "Sede perfeitos como vosso Pai do Céu é perfeito".  Obviamente em graus diferentes segundo a capacidade de cada um, capacidade esta também dada por Deus (Parábola dos talentos). Terminemos com a oração de Santo Agostinho: "Senhor, fazei que eu conheça a Vós e conheça a mim; conheça a Vós para Vos amar; conheça a mim para me renunciar". Amém!

PS.: Queria fazer duas observações: 1ª - que os estes vários estágios das almas não são estanques, de tal modo que um começa quando o outro termina; mas se compenetram. 2ª - Que as almas são muito diversificadas, de tal modo que podemos dizer que há mais faces espirituais que faces corporais. Acima, expusemos o que comumente acontece no mundo das almas, sem levar em conta, inclusive, as exceções. Na verdade, o Espírito Santo sopra onde quer e quando quer.  E quem desejar mais algum esclarecimento, pode pedi-lo nos seus comentários. Obrigado e que Deus abençoe a todos!

 

segunda-feira, 20 de julho de 2020

MANSÃO DOS MORTOS


Perguntaram-me sobre a mudança que, há alguns anos, foi feita na tradução do Credo. A palavra "INFERNOS" foi trocada por "MANSÃO DOS MORTOS".
No Pai-Nosso, houve a mudança de "DÍVIDAS" para "OFENSAS". Sobre isto já postei um artigo e lá demonstro pelas Sagradas Escrituras, que esta mudança não oferece nenhum problema, pois os Evangelistas S. Mateus (VI, 12) e S. Lucas XI, 4) empregaram respectivamente DÍVIDAS (em latim "debita") e "OFENSAS" (em latim "peccata"). Assim sendo, alguns países adotaram ora uma, ora outra tradução. Em Portugal  sempre se empregou a palavra "OFENSAS"; já na Itália foi sempre traduzido segundo S. Mateus, isto é, "DÍVIDAS" (Ital. "DEBITI). E no Brasil fora traduzido por "DÍVIDAS" como na Itália, e só há algumas décadas passou-se a adotar a tradução portuguesa. Fico pensando em Santo Antônio de Pádua que era português (nasceu em Lisboa), e passou a maior parte de sua vida em Itália, onde morreu (Pádua). No tempo que esteve em Portugal, rezava "perdoai nossas ofensas" e depois em Itália passou a rezar "perdoai nossas dívidas". S. José de Anchieta, quando estava em Portugal rezava "perdoai nossas ofensas"; quando veio para o Brasil, rezava "perdoai nossas dívidas". Tenho certeza que o fizeram sem a mínima dificuldade, já que a Sagrada Escritura emprega as duas palavras. Atualmente acho que a mudança até  faz sentido porque a palavra "dívida" passou a ter um sentido muito mais monetário. Mas quem reza "dívidas", pensa em "ofensas". S. Mateus escreveu eu aramaico, e neste idioma, DÍVIDA quer dizer OFENSA ou PECADO.

Agora, a mudança feita no Credo, de "INFERNOS" por "MANSÃO DOS MORTOS", é bem questionável.

Não resta dúvida que também aqui seria compreensível uma mudança, já que o palavra "infernos" evocava a palavra "inferno", lugar dos condenados, embora a tradução "Infernos" seja correta porque corresponde exatamente a palavra original hebraica SHEOL, e em grego HADES. Devemos notar, no entanto, que é INFERNOS (no plural) e não INFERNO (no singular).
SHEOL  (em hebraico); HADES (em grego); INFERNA ou INFERI (em latim) significam LUGARES INFERIORES. Quais são esses lugares inferiores? São: Inferno, lugar dos condenados; Purgatório, onde estão as almas se purificando para depois irem para o Céu; e Limbo dos Justos, onde estiveram as almas dos justos até a Ascensão de Jesus aos céus. Isto porque o Céu, a partir do pecado de nossos primeiros pais, estava fechado. Jesus Cristo. o Salvador, sofreu, morreu e ressuscitou, e justamente no dia que subiu aos Céus, levou consigo todos os justos que morreram antes d'Ele, justos estes que estavam num espécie de cárcere (I S. Ped. III, 19). E S. Paulo diz: "Tendo subido ao alto levou cativo o cativeiro" (Efésios IV, 8).

É sobre este último lugar inferior que falaremos a seguir.

Os Apóstolos disseram em seu Símbolo (=Credo que rezamos antes do Terço) sobre Jesus Cristo: foi sepultado (no 4º artigo); e no 5º artigo diz: desceu aos lugares inferiores (Infernos, Scheol, Hades). São duas coisas bem diferentes, porque a expressão foi sepultado, refere-se ao corpo de Jesus; e quando diz: desceu aos infernos, refere-se a alma. Assim, qualquer tradução da palavra Scheol que não distinga bem estas duas coisas, não é uma boa tradução. E a tradução "MANSÃO DOS MORTOS", justamente confunde estas  duas coisas. Se tivessem traduzido por MORADA já não seria a tradução ideal, porque morada dos mortos, todo mundo entende que é o cemitério, ou, como no caso de Jesus, o sepulcro. MANSÃO, pior ainda, porque significa morada luxuosa de grande extensão. Não creio que um lugar de espera por tanto tempo, seja considerada lugar de luxo. Por isso é que S. Pedro chama este lugar, onde estiveram as almas dos justos, de CÁRCERE. Tornou-se, sim, o próprio Paraíso, quando lá entrou a alma de Jesus e ali ficou desde Sua morte até Sua Ressurreição. Por isso mesmo que Jesus, momentos antes de morrer na cruz, disse a Dimas, o bom ladrão: "HOJE mesmo estarás comigo no PARAÍSO" (S. Luc. XXIII, 43).   
   
Caríssimos, então, qual seria a melhor tradução? O Catecismo da Igreja Católica (CIC) no nº  633, neste particular, cita o Catecismo Romano: "São precisamente essas almas santas, que esperavam seu Libertador [Salvador] no Seio de Abraão, que Jesus libertou ao descer aos Infernos" (CRO, Parte I,  c. 6, nº 3, c). SEIO DE ABRAÃO é uma expressão usada pelo próprio Jesus na parábola do pobre Lázaro e do rico avarento (S. Luc. XVI, 22). Os teólogos modernos não querem traduzir Scheol por SEIO DE ABRAÃO porque dizem que esta expressão de Jesus refere-se ao estado de paz e segurança que é o Paraíso. Na verdade, a alma do Patriarca Abraão estava no Scheol, porque Jesus ainda não havia morrido, ressuscitado e subido ao Céu. Santo Tomás de Aquino, escreveu em latim e traduz por LIMBUS PATRUM=  LIMBO DOS PAIS (dos Patriarcas e demais justos do AT).

Limbo quer dizer ORLA; porque os antigos pensavam assim: o inferno dos condenados estaria no centro da terra, logo depois em torno dele, vinha uma orla, que seria o Purgatório, e a seguir uma outra orla, onde justamente estariam as almas dos justos, até a Ascensão de Jesus; finalmente uma outra orla, que seria o Limbo das almas das crianças mortas sem o batismo. A Igreja nunca definiu nada a este respeito. A Teologia pós conciliar, só fala em ESTADO e não fala em LUGAR. A Bíblia tanto fala dos LUGARES INFERIORES (SCHEOL) como também dos LUGARES SUPERIORES (CÉUS), mas não determina os sítios dos lugares inferiores, nem, dentre os superiores, do mais alto que é o Paraíso. Obviamente, quem vai para os lugares inferiores, a Bíblia diz que DESCEU; quem vai para os lugares superiores diz que SUBIU, ELEVOU-SE (Jesus na Ascensão) ou FOI ELEVADO (Nossa Senhora na Assunção). S. Paulo diz que foi elevado ao terceiro Céu, o que significa que atravessou o céu atmosférico (onde se formam as nuvens), passou pelo céu do firmamento (onde estão os astros) e chegou ao Céu dos Céus, isto é, ao Paraíso, que é o mais alto de todos, onde está Deus (o Nosso Pai que está no Céu). A Bíblia diz que o profeta Elias foi arrebatado vivo ao céu; diz também que voltará no fim do mundo e que só então será morto pelo Anti-Cristo e ressuscitado por Jesus. Estará no 2º céu? Então podemos dizer que, assim como o inferno dos infernos ou o mais baixo dos lugares inferiores, é o lugar dos condenados (Inferno); o Céu dos Céus, ou o mais alto dos lugares superiores, é onde estão Deus, Jesus Cristo, Nossa Senhora, os Anjos e os Santos (o Paraíso). Mas, na verdade, o que importa, é evitarmos descer, e fazermos de tudo para subir até o Nosso Pai do Céu. 

Muitos Santos Padres falam sobre esta verdade: a descida da alma de Jesus aos lugares inferiores. Baseiam-se nos Símbolo dos Apóstolos. Citam como indicação deste mistério, as seguintes passagens das Sagradas Escrituras: Atos II, 24, 1º discurso de S. Pedro após o Pentecostes: "Mas Deus O (=Cristo) ressuscitou e livrou dos laços da morte, porquanto era impossível que por esta fosse retido". E no vers. 27 cita o Salmo XV, 10: "Porque não abandonarás a minha alma nos infernos" , e no vers. 31, aplica este mesmo texto a Jesus Cristo: "Profeticamente falou (Davi) da ressurreição de Cristo, que não seria deixado nos infernos (a alma), nem sua carne (o corpo) sofreria a corrupção" (no túmulo). E o mesmo S. Pedro na sua 1ª Epístola III, 19 e IV, 5 e 6, diz o quê a alma de Jesus foi levar a estas almas dos justos: "No qual Ele também foi pregar aos espíritos que estavam no cárcere"; "por isso foi o Evangelho também pregado aos mortos" (=às almas dos justos que tinham morrido antes da morte de Jesus).

Estuda-se em Teologia que a alma de Jesus, logo após a morte deste, desceu aos três lugares inferiores (ao Scheol), porém de modos diversos. Desceu ao lugar mais baixo que é o Inferno dos condenados, desceu porém, apenas com seu poder, para arguir e convencer os condenados sobre sua infidelidade e malicia. Desceu ao Purgatório, para mostrar às almas benditas (ainda não totalmente santas) aquela glória que com toda certeza, deviam esperar. E, finalmente, a alma de Jesus se fez realmente presente no Limbo dos Pais (nome dado por Santo Tomás) para pregar-lhes o Evangelho (como atesta S. Pedro) e também para iluminá-las com a luz da glória. Isto porque a divindade nunca abandonou nem o corpo e nem a alma de Jesus. E, a partir da entrada da alma de Jesus naquele cárcere, aquele lugar transformou-se no Paraíso.

Donde concluímos, caríssimos, que a tradução  tradicional é a mais adequada. Por isso D. Antônio de Castro Mayer, na época, preferiu conservá-la. Apenas, quero deixar bem claro que os fiéis saibam exatamente o mistério de fé que estão confessando em sua oração. Do contrário, seria mera recitação de fórmula, o que não agrada a Deus.

Aos que me fizeram esta pergunta, estou à disposição para quaisquer outros esclarecimentos. Que Deus os abençoe. Amém!


domingo, 19 de julho de 2020

EVANGELHO DO 7º DOMINGO DEPOIS DE PENTECOSTES

Extraído do   Livro "INTIMIDADE DIVINA" do P. Gabriel de S.ta M.  Madalena,O. C. D.

   No Evangelho de hoje, Jesus chama a nossa atenção para os "falsos profetas" que se apresentam "vestidos de ovelhas e por dentro são lobos rapaces". Muitos apresentam-se como mestres de moral ou mestres espirituais, porém são mestres falsos porque as suas obras não correspondem às suas palavras; aliás, é fácil falar bem, mas não é fácil viver bem. Às vezes as doutrinas propostas são falsas em si mesmas, embora à primeira vista o não pareçam, visto que se revestem de certos aspectos de verdade; é falsa a doutrina que, em nome de um princípio evangélico, ofende um outro, por exemplo, que em nome da compaixão para com uma pessoa lesa o bem comum, que em nome da caridade ofende a justiça ou esquece a obediência aos legítimos superiores. É falsa a doutrina que é causa do relaxamento, que perturba a paz e a união, que, sob pretexto de um bem melhor, separa os súditos dos superiores, que não se subordina à voz da autoridade. Jesus quer-nos "simples como pombas", alheios à crítica e ao juízo severo do próximo, mas quer-nos também "prudentes como as serpentes" (Mt. 10, 16), a fim de nos não deixarmos enganar pelas falsas aparências do bem que escondem perigosas insídias.

  Porém, ser mestre não é para todos, nem a todos se exige; mas a todos - sábios e ignorantes, mestres e discípulos - pede o Senhor a prática concreta da vida cristã. De que nos serviria possuir uma doutrina profunda e elevada, se depois não vivêssemos segundo essa doutrina? Portanto, em vez de querermos ser mestres dos outros, procuremos sê-lo de nós mesmos, empenhando-nos em viver integralmente as lições do Evangelho, imitando Jesus que primeiro "começou a fazer e depois a ensinar" (At.1, 1). O fruto genuíno que há-de comprovar a bondade da nossa doutrina e da nossa vida é sempre o que Jesus nos indicou: o cumprimento da Sua vontade. Cumprimento que significa adesão plena às leis divinas e eclesiásticas, obediência leal aos legítimos superiores, fidelidade aos deveres de estado, e tudo isto em todas as circunstâncias, mesmo quando exige de nós a renúncia à nossa maneira de ver e à nossa vontade.
 
Ó meu Deus, a Vossa suprema e eterna vontade não quer senão a nossa santificação, por isso a alma que deseja santificar-se despoja-se da sua vontade e reveste-se da Vossa. Ó dulcíssimo Amor, parece-me ser este o verdadeiro sinal dos que estão enxertados em Vós: que sigam a Vossa vontade à Vossa maneira e não à sua, que sejam revestidos da Vossa vontade" (cfr. Santa Catarina de Sena).

FALSOS PROFETAS

S. Mateus VII, 15-21

Acautelai-vos dos falsos profetas...

Caríssimos e amados irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo!

"Acautelai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós sob peles de ovelhas, e por dentro, no entanto, são lobos vorazes". Sempre houve e sempre haverá falsos pregadores porque eles são frutos do orgulho e da mentira; em uma palavra, são filhos do demônio. Eis como o Espírito Santo ensina a tratar os falsos profetas: "Quando chegaram [Paulo e Barnabé] a Salamina, pregavam a palavra de Deus nas sinagogas dos judeus. Tinham com eles João. Tendo percorrido toda a ilha até Pafos, encontraram certo homem mago, falso profeta, judeu, que tinha por nome Barjesus, o qual estava com o procônsul Sérgio Paulo, homem prudente. Este, tendo mandado chamar Barnabé e Saulo, mostrou desejos de ouvir a palavra de Deus. Mas Elimas, o mago (porque assim se interpreta o seu nome) se lhes opunha, procurando afastar da fé o procônsul. Porém Saulo, que também se chama Paulo, cheio do Espírito Santo, fixando nele os olhos, disse: Ó cheio de todo o engano e de toda a astúcia, filho do demônio, inimigo de toda justiça, não acabarás de perverter os caminhos retos do Senhor? (Atos XIII, 5-11).

 O único Profeta que devemos ouvir, o único Mestre cujas lições devemos seguir, é Jesus Cristo e os que O representam, os que se tornaram guardiões e arautos de Sua doutrina. "Ipsum audite" diz o Altíssimo aos apóstolos ao mostrar-lhes seu Filho Jesus Cristo: "ESCUTAI-O". Quanto aos Apóstolos e, na sua pessoa, aos seus sucessores, o próprio Jesus disse: "Quem vos ouve, a mim ouve". Quem segue a Nosso Senhor Jesus Cristo nunca anda nas trevas, nunca se desmente, porque Jesus é a Verdade.

Mas, infelizmente, sempre houve e sempre haverá pessoas orgulhosas que se arvoram em mestres para dominar os fiéis, querendo obrigá-los a segui-los "per fas et nefas" quer os dirijam para um lado, quer os levem para o oposto. Mas sendo tal atitude de per si odiosa, empregam a hipocrisia e, às vezes, abusam dum dom de Deus, isto é, de uma inteligência privilegiada, para conduzir suas ovelhas com esperteza, com astúcia, ou seja, como lobos vorazes mas sob peles de ovelhas. Querem simplesmente a honra de conduzir as ovelhas a seu bel prazer, e se esforçam por induzir os fiéis a aceitar suas lições. Estes falsos profetas, estes messias, como eles não têm receio de se chamarem algumas vezes, infelizmente são numerosos em nossos dias.  Estes falsos "cristos" sempre tiveram a aprovação e o apoio do mundo. Hoje, porém, o mundo tem muito mais recursos para secundar suas ações lupinas e, em contra partida, para lutar contra os verdadeiros pregadores e, no mínimo, para neutralizar sua ação missionária.

O Divino Mestre, depois de ter dito que a porta do céu é estreita e que apertado é o caminho que a ele conduz, prossegue: Guardai-vos dos falsos doutores... Falsos doutores são, consequentemente, aqueles que ensinam que o caminho do céu é largo, cômodo... Falsos profetas são aqueles que pregam ampla liberdade; que ensinam uma moral laxa que se acomoda às paixões humanas. Os falsos doutores se cobrem com pele de ovelha, apresentando-se com ares de santidade; ostentando seus erros sob um aspecto de verossimilhança; empregando argumentos que, na verdade, são sofismas; deturpando as Sagradas Escrituras; pregando um "Cristianismo light"; aparentando mansidão, simplicidade, piedade...; usando de palavras doces, de frases suaves... Hodiernamente, infeccionados pelo ecumenismo pós-conciliar, gostam de se moverem em terreno comum, onde reina o interconfessionalismo. Basta os falsos profetas deixarem de combater o mundo com suas modas indecentes, vaidades e ideias contrárias ao Santo Evangelho, e logo são ouvidos e seguidos pela maioria.

Para conhecê-los é bastante examinar-lhes os frutos. A maior parte das heresias, com poucas exceções,  foram propagadas por homens da hierarquia, bispos, patriarcas e padres e simulavam santidade. Mas quais foram os frutos das heresias? As divisões, as rixas, os morticínios, os exílios, as rapinas, as guerras, a profanação da igrejas e dos sacramentos. Na verdade, a boa árvore dá bons frutos, a árvore má, maus frutos. Não é possível que uma árvore má produza bons frutos. Se os frutos são maus, é sinal evidente da maldade da árvore. Os péssimos frutos da heresia, do erro, das falsas religiões estão a mostrar a sua corrupção.  

"Toda árvore que não dá bom fruto será cortada e lançada ao fogo". Caríssimos, é mister considerarmos atentamente esta palavra do divino Salvador: "QUE NÃO DÁ BONS FRUTOS". Jesus Cristo não disse: que dá maus frutos. Na verdade, há muitos cristãos que creem ter cumprido toda justiça, porque pretendem não ter feito o mal, não ter matado, nem roubado, não ter, em uma palavra, feito mal a ninguém. Segundo a palavra do divino Mestre, no entretanto, não é suficiente não ter feito o mal mas é preciso ter feito o bem. Com efeito, toda criatura neste mundo tem uma missão a cumprir, desde um pé de erva até o sol; com muito mais razão o homem,  a obra-prima e o rei da criação. O Evangelho, todas as vezes que fala do reino dos céus, representa-o como o preço do esforço, do trabalho, do sacrifício. É um reino que é preciso conquistar e só os valorosos o arrebatam; é um negócio que é mister realizar, uma vinha que é preciso cultivar, uma casa que é necessário administrar. A inação, a ociosidade aí são condenadas com persistência. Diz o profeta Rei: "Afastai-vos do mal e fazei o bem" (Salmo XXXVI, 27). E o mesmo diz o profeta Isaías: "Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem" (Is. I, 16 e 17).

"Nem todo aquele que me diz: Senhor, Senhor, entrará no Reino dos céus, mas, o que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, este é que entrará no Reino dos céus". Estas palavras do Divino Mestre são um desenvolvimento e comentário das precedentes que supra comentamos. Com efeito, dizer: Senhor, Senhor, é, na verdade reconhecer a divindade de Jesus Cristo. A fé é coisa boa, necessária, indispensável. Dizer: Senhor, Senhor, é bom outrossim porque é orar. A oração, as práticas piedosas são úteis, necessárias mesmo, e muito recomendadas por Jesus Cristo e pela Igreja. Mas isto não é suficiente: é mister juntar as obras. Jesus di-lo formalmente: Entrará no reino dos céus aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Mas esta vontade onde se encontra expressa? No Evangelho, nos mandamentos de Deus e nos ensinamentos e preceitos da Igreja, que não são outra coisa que o comentário e a aplicação das leis de Deus.

Caríssimos, depois da união da natureza humana com a divina, que adoramos em Jesus Cristo, e da união da maternidade com a virgindade, que honramos em Maria Santíssima, não há nenhuma mais admirável que a da nossa vontade com a do Senhor. Este abandono filial, que nos entrega inteiramente nas mãos de Deus, é a mais bela vitória da graça sobre a nossa vontade, sem ofender o nosso livre arbítrio. Através desta união, adquiro uma admirável semelhança, uma espécie de parentesco com Jesus Cristo. Ele desceu à terra, nela viveu e morreu, só para fazer a vontade de seu Pai. Com esta virtude, não temos outro alimento senão o que tem Jesus Cristo. Entro na sua família, torno-me seu irmão, sua irmã, sua mãe (Cf. S. Mateus XII, 50). Elevo-me até Deus, tomando a sua vontade por norma da minha; nisto consiste a verdadeira santidade. Pois, quando faço a vontade do Senhor e obedeço à direção de sua suma sabedoria, posso, acaso, enganar-me? E, quando procedo conforme com a santidade infinita, posso pecar?

"Ó meu Deus, quando estiver perfeitamente unido a Vós, não terei já tribulação nem dor; então a minha vida será cheia de alegria, porque eu mesmo serei cheio de Vós" (S. Agostinho). Amém!

SÉTIMO DOMINGO DEPOIS DE PENTECOSES

Romanos VI, 19-23

"Falo à maneira dos homens, por causa da fraqueza da vossa carne, porque, assim como oferecestes os vossos membros para servirem à imundície e à iniquidade, a fim de (chegar) à iniquidade, assim oferecei agora os vossos membros para servirem à justiça, a fim de chegar à santificação. Porque, quando éreis escravos do pecado, estivestes livres quanto à justiça. Que fruto tirastes então daquelas coisas, de que agora vos envergonhais?(Nenhum), pois o fim delas é a morte. Mas agora, que estais livres do pecado e feitos servos de Deus, tendes por vosso fruto a santificação e por fim a vida eterna. Porque o estipêndio do pecado é a morte. Mas a graça de Deus é a vida eterna em nosso Senhor Jesus Cristo".

Neste capítulo VI de sua Carta aos Romanos, São Paulo observa que Jesus morreu uma só vez e "ressuscitando dos mortos, não morrerá jamais; pois a morte nenhum domínio exercerá sobre Ele". Assim também quem morreu para o pecado, há de viver para Deus, não permitindo que sobre seu corpo reine o pecado, mas libertando-se dele para sempre. Tanto mais que o fruto do pecado é a morte e o fruto da graça é a vida eterna.

O pecador é vítima de seus próprios pecados, e é castigado às vezes, por eles mesmos. Só para darmos alguns  exemplos: os libertinos levam uma vida infernal, não só enquanto estão no caminho da condenação mas também mesmo neste mundo. Paz, honra, dignidade, muitas vezes, a saúde, a família, tudo é imolado sobre o triste altar de um curto prazer pecaminoso. Quando a faísca dos pecados impuros não for logo apagada, transforma-se num incêndio devastador e incontrolável ou quase. Quantas fadigas e quantas lutas se impõem aqueles que se entregam às paixões impuras!

Os vaidosos e, sobretudo as vaidosas, a quantos sacrifícios se submetem por causa da beleza. Isto sim é ser escravo; escravo das modas. E quanta preocupação e gastos no afã de se sobressair nas reuniões mundanas! Infelizes daqueles que se entregam às drogas e à bebida! Estragam sua saúde, a da alma e também a do corpo. "Que fruto tiveste  -  pergunta o Apóstolo  -  naquelas coisas de que agora te envergonhas?" Qual um general déspota que, depois de haver exigido dos soldados os maiores sacrifícios, dá-lhes por soldo a morte, assim é o pecado. Depois de vos conduzir por caminhos íngremes, paga-vos com o salário da vergonha. Daí o conselho de São Paulo: se tivestes a infelicidade de sofrer tanto para correr atrás da satisfação das tuas paixões, empregue agora, depois de convertido, todas as tuas forças para correr no caminho da virtude e da verdadeira paz, enfim, para a vida eterna na Pátria do Repouso eterno. Em outras palavras: reserva para o bem os entusiasmos que outrora consagravas ao mal.

A lei da castidade, sobretudo, parece reclamar desmedidas renúncias? Entretanto, devemos igualmente medir os sacrifícios que foram feitos para simplesmente se afundar e se revolver na lama de imundícies. Então, uma vez convertido, deve o homem, com igual ânimo, enfrentar as dificuldades que se opõem a liberdade de filho de Deus. O pecador convertido deve pensar na pontualidade com que se apresentava em outros tempos à festas mundanas mesmo depois de um dia de trabalho estafante, e agora não deve medir esforços para ter a mesma pontualidade em se apresentar à igreja para a Santa Missa. Quantos gastos para a vaidade! Agora, convertido, seja generoso para com os pobres e em ajudar à Igreja. Conta-se de certo santo, cujo nome não me lembro no momento, que ao passar pela rua, encontrando-se com uma dama esmeradamente elegante e perfumada, desatou a chorar. Perguntando-lhe outros a razão destas lágrimas, respondeu-lhes o santo: "É que vejo nesta mulher maior cuidado em servir ao mundo, do que atenções encontro em mim no serviço de Deus".

O próprio São Paulo é um exemplo de convertido! Quem mais investiu contra a Igreja do que o fariseu Saulo a "respirar ameaças e morte contra os discípulos do Senhor"? Mas quem mais do que ele, soube com igual generosidade consagrar à Igreja e a Jesus  os nobres impulsos do coração e do gênio? Nem os açoites dos romanos, nem as flagelações dos judeus; nem os perigos dos ladrões e dos da sua nação, dos gentios, do deserto e do mar; nem o trabalho, nem a fadiga; nem as vigílias, nem a fome, nem a sede,  (cf. 2 Cor. ) enfim, jamais coisa alguma conseguiu arrefecer-lhe o entusiasmo por Cristo Jesus, que, outrora, odiava até a perseguição e que, depois, convertido, amou até a adoração.


Poderíamos dar muitos outros exemplos de convertidos: como Santo Agostinho e Santa Maria Madalena. Mas quero terminar com as palavras do grande Orígenes: "Corriam, outrora, teus pés para o delito, corram agora para a virtude. Estendiam-se antigamente tuas mãos aos bens alheios, estendam-se hoje aos teus bens para generosamente distribuí-los. Voltavam-se antes teus olhos às riquezas do teu próximo na ânsia de possuí-las, voltem-se, agora, para os pobres no desejo de socorrê-los. O ofício que teu corpo um dia prestava aos vícios, ofereça-o hoje à virtude; e o serviço antigamente dado à imundície seja agora dado à castidade e à santidade". Amém!

quinta-feira, 16 de julho de 2020

ORIGENS DA ORDEM CARMELITANA

Era o ano 860 antes de Cristo. As Sagradas Escrituras no 1º Livro dos Reis, XVIII, 16 a 45 assim nos narram: "Acab saiu a encontrar-se com Elias. E, vendo-o, disse: Porventura és tu aquele que trazes perturbado Israel? Elias respondeu: Não sou eu que perturbei Israel, mas és tu e a casa de teu pai, por terdes deixado os mandamentos do Senhor, e por terdes seguido Baal. Mas, não obstante, manda agora, e faze juntar todo o povo de Israel no monte Carmelo, como também os quatrocentos e cinquenta profetas de Baal, os quatrocentos profetas dos bosques, que comem da mesa de Jezabel. Mandou, pois, Acab chamar todos os filhos de Israel e juntou os profetas no monte Carmelo.


  Elias, aproximando-se de todo o povo disse: Até quando claudicareis vós para dois lados? Se o Senhor é Deus, segui-o; se, porém, é Baal, segui-o. O povo não respondeu palavra. Elias tornou a dizer ao povo: Eu sou o único que fiquei dos profetas do Senhor; mas os profetas de Baal chegam a quatrocentos e cinquenta homens. Deem-nos dois bois: escolham eles para si um boi, e, fazendo-o em pedaços, ponham-no sobre a lenha, mas não lhe ponham fogo por baixo; eu tomarei o outro boi, pô-lo-ei sobre a lenha e também não lhe porei fogo por baixo. Invocareis vós os nomes dos vossos deuses, e eu invocarei o nome do meu Senhor. O Deus que ouvir, mandando fogo, esse seja considerado o ( verdadeiro ) Deus. Todo o povo, respondendo, disse: Ótima proposta. Disse, pois Elias aos profetas de Baal: Escolhei para vós um boi e começai vós primeiro, porque sois em maior número; invocai os nomes dos vossos deuses e não ponhais fogo por baixo.

  
Eles,pois, tomando o boi que lhes foi dado, sacrificaram-no, e invocaram o nome de Baal, desde manhã até o meio-dia dizendo: Baal, ouve-nos. Mas não se percebia voz, nem havia quem respondesse. E saltavam diante do altar que tinham feito. Sendo já meio-dia, Elias escarnecia-os, dizendo: Gritai mais alto, porque ele é um deus, e talvez esteja falando em alguma estalagem, ou em viagem, ou dorme e necessita que o acordem. Eles, pois, gritavam em alta voz, e retalhavam-se segundo o seu costume, com canivetes e lancetas, até se cobrirem de sangue. Mas, passado o meio-dia, e enquanto eles profetizavam, chegou o tempo em que era costume oferecer-se o sacrifício, e não se ouvia voz, nem havia quem respondesse, nem ouvisse os seus rogos. Disse Elias a todo o povo: Aproximai-vos de mim. Aproximando-se o povo dele, Elias reparou o altar do Senhor, que tinha sido destruído. Tomou doze pedras, segundo o número das tribos dos filhos de Jacó, a quem o Senhor dirigira a sua palavra, dizendo: Israel será o teu nome. Com estas pedras edificou um altar em nome do Senhor. Fez um regueiro como dois pequenos sulcos, em volta do altar, acomodou a lenha, dividiu o boi em quartos, pô-lo sobre a lenha, e disse: Enchei de água quatro talhas, entornai-as sobre o holocausto e sobre a lenha. Disse outra vez: Fazei isto ainda segunda vez. E, tendo-o eles feito segunda vez, disse: Fazei ainda terceira vez, isto mesmo. Eles o fizeram terceira vez. As águas corriam em volta do altar e o regueiro encheu-se.

   Sendo já o tempo de se oferecer o holocausto, chegando-se o profeta Elias, disse: Ouve-me, Senhor, ouve-me, para que este povo aprenda que tu és o Senhor Deus e que converteste novamente o seu coração.

   O fogo do Senhor baixou do céu, devorou o holocausto, a lenha e as pedras, consumindo o mesmo pó e a água que estava no regueiro. Todo povo vendo isto, prostrou-se com o rosto em terra e disse: O Senhor é o Deus! O Senhor é o Deus! Elias disse-lhes: Apanhai os profetas de Baal, não escape deles nem um só. Tendo-os o povo agarrado, Elias levou-os à torrente de Cison, onde os matou.

   Elias disse a Acab: Vai, come e bebe, porque já se ouve o ruído duma grande chuva. Acab retirou-se a comer e beber; Elias, porém, subiu ao alto do Carmelo, e, inclinado por terra, pôs o seu rosto entre os joelhos, e disse ao seu criado: Vai e olha para o lado do mar. Tendo este ido e tendo olhado, disse: Não há nada. Elias disse-lhe segunda vez: Torna a ir sete vezes. À sétima vez, eis que se levanta do mar uma pequena nuvem, como a pegada dum homem. Disse-lhe Elias: Vai e dize a Acab: Manda atrelar os cavalos no seu carro e corre, não te apanhe a chuva.
   E, quando ele voltava para uma e para outra parte, eis que se cobriu o céu de trevas, vieram nuvens e vento e caiu uma grande chuva". Até aqui as palavras das Sagradas Escrituras. ( 1Reis, XVIII, 16 a 45 ).

   Esmagada que foi a cabeça do demônio que suscitara a idolatria, destruído aquele nefasto ecumenismo, exterminados os falsos profetas, apareceu no céu o sinal da Virgem, e na terra, terão início a sua Ordem e o seu culto, oitocentos e poucos anos antes de seu nascimento.

   Num futuro não tão longe, doutores da Igreja como Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São João Damasceno e outros, explicarão ao mundo como esta nuvenzinha, erguendo-se pura do mar amargo, e deixando atrás as impurezas do mar, é figura de uma Virgem Imaculada, que sairá pura do mar da humanidade, liberta de toda impureza do pecado original.

   Dois mil e cento e dez anos mais tarde, São Luiz IX, rei de França, ouviu falar da santidade de certos monges do Carmelo, dos quais alguns haviam emigrado para a Europa, por causa das vitórias dos sarracenos na Palestina. E São Luiz IX foi a Palestina , subiu o Monte Carmelo. Desejava conhecer aqueles monges que a si mesmos se denominavam Eremitas de Santa Maria do Monte Carmelo. Queria-os também em França e ficou maravilhado ao ouvir da boca daqueles monges o relato da tradição da Ordem. Dizem que são descendentes do profeta Elias. E este lhes ensinara que vira numa nuvem com a forma de pegada humana, que pelo poder divino, se levantara do mar, uma imagem profética da Virgem Maria Imaculada, a qual havia de trazer a salvação dos homens, e vencer o orgulho de satanás, com o seu calcanhar de humildade. Elias ensinara a seus discípulos a implorar a vinda desta Virgem, dizendo que a planta do pé que a nuvem apresentava manifestava em si a maldição divina contra o demônio. "Porei inimizades entre ti e a mulher; entre a tua descendência e a descendência dela: tu armarás ciladas ao seu calcanhar e Ela esmagará a tua cabeça". ( Gen. III, 15 ).

   Contaram, também, a São Luiz IX que, na plenitude dos tempos, tendo aparecido a Virgem Imaculada, e depois da Encarnação do Verbo, a própria Virgem Maria se dignou visitá-los; e a Sagrada Família ao voltar de seu exílio de sete anos no Egito, havia descansado algum tempo com eles. Por eles fora construída ali no Monte Carmelo, a primeira capela do mundo dedicada à Mãe de Deus.

   São Luiz IX ficou edificado e cheio de reverência ao ver a santidade daqueles monges e ao ouvir este relato.

   E uns trinta anos antes da ida de São Luiz IX ao Monte Carmelo, alguns destes monges haviam se transferido para a Inglaterra. Ali tinha-se-lhes reunido um homem muito santo chamado Simão. Recebera o apelido de "stock"por ter vivido solitário na concavidade do tronco de uma árvore no interior de uma floresta inglesa, tal como Elias havia vivido nas grutas naturais do Carmelo.

   Dadas as perseguições,muitos carmelitas passaram para a Europa. Foi mister, então, nomear um Vigário Geral na Europa. Simão Stock foi o escolhido e, seis anos mais tarde foi eleito geral de todo Ordem.

  
O demônio que tem ódio a Maria Santíssima e a sua descendência, fomentou toda espécie de discórdias e perseguições tanto fora como dentro da Ordem do Carmelo. Vemos por isso no ano de 1251 Simão retirar-se para o Mosteiro de Cambridge, curvado sob o peso dos seus 90 anos e do de tantas provações. Ajoelhado na sua pequenina cela derrama a sua alma em ardentíssimos suspiros: "Flor do Carmelo, vinha florífera, esplendor do céu, virgem fecunda, singular. Ó Mãe benigna, sem conhecer varão, aos carmelitas dá privilégios, ó Estrela do mar"!

   E ao levantar os olhos velados pelas lágrimas, a cela enche-se-lhe de uma grande luz: Rodeada por uma multidão de anjos a Rainha do Céu desce até ele, trazendo na mão e Escapulário marrom castanho dos monges e diz-lhe;"Recebe filho queridíssimo, este hábito da minha Ordem: isto será para ti e para todos os carmelitas um privilégio. Quem morrer revestido dele não sofrerá o fogo eterno". Era o dia 16 de julho de 1251.

   A partir daí veio a paz, e a Ordem tornou-se objeto de simpatia no mundo inteiro. Eis Maria Santíssima esmagando a cabeça da infernal serpente.

   A Santa Madre Igreja reconhece o profeta Elias como o fundador da Ordem Carmelitana.Na Basílica de São Pedro no Vaticano, por ordem dos papas, foram colocadas as imagens de todos os santos fundadores de Ordens Religiosas. E, assim, lá foi colocada, por ordem do papa Bento XIII em 26 de junho de 1725, a imagem do Santo Profeta Elias, reconhecido por toda Ordem Carmelitana como o seu Fundador.






NOSSA SENHORA DO CARMO

NOSSA SENHORA DO CARMO
                                                                                                Dom Fernando Arêas Rifan *

Uma data importante no mês de julho, dia 16, é a festa de Nossa Senhora do Carmo ou do Monte Carmelo, em cuja novena preparatória estamos.
            Quase na divisa com o Líbano, o monte Carmelo, com 600 metros de altitude, situa-se na terra de Israel. “Carmo”, em hebraico, significa “vinha” e “El” significa “Senhor”, donde Carmelo significa a vinha do Senhor. Ali se refugiou o profeta Elias, que lá realizou grandes prodígios, e depois o seu sucessor, Eliseu. Eles reuniram no monte Carmelo os seus discípulos e com eles viviam em ermidas. Na pequena nuvem portadora da chuva após a grande seca, Elias viu simbolicamente Maria, a futura mãe do Messias esperado.
            Assim, Maria foi venerada profeticamente por esses eremitas e, depois da vinda de Cristo, por seus sucessores cristãos, como Nossa Senhora do Monte Carmelo.
            No século XII, os muçulmanos conquistaram a Terra Santa e começaram a perseguir os cristãos, entre eles os eremitas do Monte Carmelo, muitos dos quais fugiram para a Europa. No ano 1241, o Barão de Grey da Inglaterra retornava das Cruzadas com os exércitos cristãos, convocados para defender e proteger contra os muçulmanos os peregrinos dos Lugares Santos, e trouxe consigo um grupo de religiosos do Monte Carmelo, doando-lhes uma casa no povoado de Aylesford. Juntou-se a eles um eremita chamado Simão Stock, inglês de família ilustre do condado de Kent. De tal modo se distinguiu na vida religiosa, que os Carmelitas o elegeram como Superior Geral da Ordem, que já se espalhara pela Europa.
            No dia 16 de julho de 1251, no seu convento de Cambridge, na Inglaterra, rezava o santo para que Nossa Senhora lhe desse um sinal do seu maternal carinho para com a Ordem do Carmo, por ela tão amada, mas então muito perseguida. A Virgem Santíssima ouviu essas preces fervorosas de São Simão Stock, dando-lhe, como prova do seu carinho e de seu amor por aquela Ordem, o Escapulário marrom, como veste de proteção, fazendo-lhe a célebre e consoladora promessa: “Recebe, meu filho, este Escapulário da tua Ordem, que será o penhor do privilégio que eu alcancei para ti e para todos os filhos do Carmo. Todo aquele que morrer com este Escapulário será preservado do fogo eterno. É, pois, um sinal de salvação, uma defesa nos perigos e um penhor da minha especial proteção”.
            O Papa Pio XII, em carta a todos os carmelitas (11/2/1950), escreveu que entre as manifestações da devoção à Santíssima Virgem “devemos colocar em primeiro lugar a devoção do Escapulário de Nossa Senhora do Carmo que, pela sua simplicidade, ao alcance de todos, e pelos abundantes frutos de santificação, se encontra extensamente divulgada entre os fiéis cristãos”. Mas faz uma advertência sobre sua eficácia, para que não seja usado como superstição: “O sagrado Escapulário, como veste mariana, é penhor e sinal da proteção de Deus; mas não julgue quem o usar poder conseguir a vida eterna, abandonando-se à indolência e à preguiça espiritual”. 
                                                   *Bispo da Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney
                                                                        http://domfernandorifan.blogspot.com.br/

O ESCAPULÁRIO DE NOSSA SENHORA DO CARMO



Quero falar aqui do escapulário reduzido, o que se compõe de dois pedacinhos de lã de cor marrom e que hoje quase sempre vêm acompanhados com as imagens do Sagrado Coração e da de Nossa Senhora do Carmo.

Através deste escapulário que deve ser trazido sempre pendente do pescoço e, com ele, deve-se morrer, o devoto de Nossa Senhora, não só se consagra a Ela diante do altar, demonstrando assim o seu íntimo amor à Mãe de Deus, mas também, através do escapulário, está sempre declarando publicamente este seu amor à sempre Virgem Maria. Ainda que a essência da devoção deva ser interior, é claro que aquela pessoa que recebe o escapulário e o traz ao pescoço com devoção, mostra, outrossim, que se gloria de trazer o hábito da Mãe de Deus, de lhe pertencer, de a respeitar como Rainha, e de a amar como Mãe.

Ademais, enquanto as nossas práticas piedosas são subordinadas a tempos e a lugares, a devoção do escapulário é de todos os lugares e momentos. Trazendo sempre este meu  hábito, pequeno no tamanho mas grande no significado e nos privilégios, em qualquer parte que eu esteja, qualquer que seja a minha ocupação, Maria Santíssima vê sempre pendente do meu pescoço a prova autêntica do meu apego ao seu culto e do meu amor a Ela.  Em toda parte e sempre a honro, e lhe dirijo súplicas, porque em toda parte e sempre o meu escapulário lhe fala por mim, me recomenda à sua ternura, e lhe diz que a amo e que lhe confio toda minha vida, todos os meus empreendimentos, e, especialmente a salvação de minha alma. O meu escapulário está sempre lembrando a Maria Santíssima que ela peça ao seu divino Filho que transforme a água da minha tibieza no vinho do amor fervoroso a Deus; que alcance para mim junto ao seu Filho a graça de fazer sempre o que Ele manda.
Vamos, com a graça de Deus, meditar um pouco sobre os privilégios do escapulário, ou seja, sobre as três graças inapreciáveis:  defender-me nos perigos durante minha vida;  ajudar-me a bem morrer; e proteger-me depois da morte no purgatório.

1 - DEFENDER-ME NOS PERIGOS: e sobretudo naqueles perigos que ameaçam a minha salvação. Sabemos que, como ensina S. Pedro, o demônio, nosso adversário, anda em torno de nós, rugindo e procurando nos devorar, isto é, perder nossa alma. O demônio é invejoso e homicida desde o início do mundo. Mas, a Santíssima Mãe de Deus sempre foi sua inimiga e sempre lhe esmaga a cabeça. Portanto, se Maria Santíssima me protege, que tenho eu que recear? Estou seguro debaixo do seu manto maternal. Que consoladora certeza! Caríssimos, conheceremos um dia, todos os dardos envenenados que o demônio lançou sobre nós, mas que Maria Santíssima os quebrou antes. Conheceremos também um dia todas as tentações, cuja veemência ela terá diminuído, em atenção a este penhor do meu amor para com ele; quantas vezes, depois das minhas quedas, me terá preservado do desalento mais funesto que estas mesmas quedas.

2 - NOSSA SENHORA PROMETE SALVAR-ME: "Aquele que morrer revestido deste hábito, será preservado das chamas eternas". Estas palavras significam que Maria Santíssima nos garante o Céu. Eis as suas palavras na bula do Papa João XXII, conhecida pelo nome de SABBATINA: "Tempus bene vivendi; Locum bene agendi; constantiam bene perseverandi". Em Português: tempo de bem viver, ocasião e meio de fazer boas obras; constância para perseverar na justiça, isto é, na prática das virtudes e no estado de graça. "Tudo o que a Igreja pede para ti, quando te admite na minha confraria - disse Nossa Senhora na aparição ao Papa João XXII - te será dado a meu rogo: tempo de bem viver, ocasião e meio de fazer boas obras, constância para perseverar na justiça. Ainda quando tenhas a desgraça de incorrer no desagrado de meu Filho ofendendo-O, não te abandonarei, se vir pendente do teu pescoço o sinal da minha aliança. Tirarei para ti dos tesouros divinos uma graça tão eficaz, que comoverá teu coração e o transformará. A não ser que, resistindo obstinadamente a todos os esforços da minha ternura, me obrigues a expulsar-te da minha família, e a privar-te do meu escapulário, a minha bondade para contigo chegará a tal ponto, que, purificado pelos sacramentos ou pelo ato de contrição, te livrarás das penas eternas, se morreres tendo este santo hábito ao pescoço". É bom sabermos que o Papa Bento XIV e um grande número de outros papas, entenderam que deviam preconizar estes favores e exortaram os fiéis a trazer o escapulário; podemos citar os seguintes papas: Alexandre V, Clemente VII, Paulo III, S. Pio V, Gregório XIII, Paulo V, Clemente X, Inocêncio XI, etc.

3 -  MARIA SS. PROMETE PROTEGER-ME EFICAZMENTE NO PURGATÓRIO E ABREVIAR A SUA DURAÇÃO. Visitará, segundo a sua promessa, os confrades do Carmo na triste morada, onde acabarão de expiar as suas faltas; como duvidar que este visita lhes leve refrigério, luz e paz? Além disso ela o declara: "Quando tiverem deixado o século presente e entrado no purgatório, eu descerei, como sua terna Mãe, ao meio deles no sábado seguinte à sua morte; livrarei aqueles que lá encontrar, e os conduzirei à montanha santa, à feliz morada da vida eterna". Estas palavras estão também na bula "SABBATINA" do Papa João XXII.

Caríssimos, vejamos agora como praticar esta devoção do escapulário para merecermos tão insignes favores de nossa Mãe do Céu? Para alcançar o privilégio de uma boa morte é necessário entrar nesta confraria, recebendo e trazendo o escapulário, e tê-lo pendente do pescoço na hora da morte. Para gozar do privilégio da bula SABBATINA,  além das condições precedentes, exige-se que o confrade guarde a castidade própria do seu estado, reze o pequeno Ofício da Santíssima Virgem ou faça abstinência de carne nas quartas-feiras e sábados (evidentemente também nas sextas-feiras pelo mandamento da Igreja); caso não puder, por justa causa, fazer esta abstinência, reza-se no dia um terço por comutação; e, quando não puder nunca fazer abstinência da carne, então, deve rezar todos os dias, sete Padres-Nossos e sete Ave-Marias. Devemos observar ainda que a antiga Congregação das Indulgências , 12 de agosto de 1840 e depois em 22 de junho de 1842 etc. permite que os sacerdotes que impõem o escapulário deem outras comutações.

Caríssimos, o santo hábito da Virgem Imaculada prega-me a inocência e a fuga de todo o pecado. Ele está sempre me exortando a regular os meus passos, a velar sobre todas as minhas ações, a purificar todas as minhas intenções, a nada omitir de tudo quanto pode contribuir para a minha santificação e para a edificação do próximo. Mas, pergunta-se: se alguém tiver a fraqueza de faltar com estas condições ou, pelo menos, com alguma delas, como por exemplo a castidade segundo o próprio estado, como fazer? Ou estaria tudo perdido? Se alguém tiver esta desgraça, peça a Jesus através de Sua Mãe Santíssima, a graça de fazer uma santa confissão, e continue vigiando, fazendo penitência e rezando para alcançar a graça da perseverança.

Ó Maria Santíssima, seja sempre o vosso hábito o meu adorno e a minha defesa. Esteja eu dele revestido na hora da morte; seja para mim agora uma veste de justiça, para se transformar um dia em veste de glória e imortalidade feliz. Amém!