Dadas estas explicações (no post anterior), vamos agora apresentar o exemplo de um homem a quem Deus atribuiu JUSTIÇA SEM OBRAS, a quem Deus concedeu a justificação, não como quem paga um salário por dívida, mas por um decreto da sua graça em vista da fé n'Aquele que justifica o ímpio, tal qual como descreveu São Paulo.
Este foi o bom ladrão que morreu juntamente com Cristo no Calvário. Era um criminoso, seu passado tinha sido deplorável. Mas a graça divina toca o seu coração. Ele é iluminado pela fé: apesar de ver Cristo tão humilhado no suplício da cruz, n'Ele enxerga o Rei Divino, cujo reino não é deste mundo. Da fé nasce a esperança de alcançar a sua complacência: Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino (Lucas XXIII-42). Da fé nasce a caridade, o amor a Cristo pelo qual defende o Divino Mestre contra as blasfêmias do seu companheiro, não temendo proclamar abertamente, perante os algozes, a inocência do Salvador, quando os próprios Apóstolos não tiveram coragem de vir assim proclamá-la, da fé nasce o reconhecimento de seus erros, o arrependimento sincero de todos os seus crimes: Nem ainda tu temes a Deus, estando no mesmo suplício? E nós outros o estamos na verdade justamente, porque recebemos o castigo que merecem as nossas obras; mas este nenhum mal fez (Lucas XXIII-40 e 41). Diante de tais disposições que havia no coração de um homem que tinha sido um ímpio, Cristo não indagou quais eram as suas boas obras passadas para lhe dar a justificação, Cristo não lhe disse que só se tornaria justo se praticasse tais e tais obras, tornou-o um justo imediatamente, fê-lo de um pecador um santo: Em verdade te digo que hoje serás comigo no paraíso (Lucas XXIII-43).
Que se conclui daí? Simplesmente que a graça santificante não nos é dada como prêmio das obras, mas como benefício de Deus, embora se exijam certas disposições para recebê-las: "Nós somos justificados gratuitamente neste sentido de que nada do que precede a justificação, nem a fé nem as obras, podem merecer a graça da justificação" (Concílio de Trento VI-8).
Uma vez justificado, uma vez tornado um justo, o bom ladrão, se queria ir para o Céu tinha que evitar o pecado mortal, observar a lei divina; aliás o seu arrependimento, para ser sincero, teve que incluir a intenção de nunca mais roubar, de levar outra vida, de proceder como um verdadeiro discípulo de Cristo, se por acaso o livrassem daquele suplício e ele tivesse ainda mais uns dias, ou meses, ou anos de vida. A intenção das obras estava, portanto, incluída no seu arrependimento.
Mais ainda: Ele teve, pelo menos, três horas de vida, pois quando o Mestre tão bondosamente lhe perdoou, era, então, quase a hora sexta (Lucas XXIII-44). À hora nona, Cristo ainda estava falando (Marcos XV-34). Ora, Cristo foi dos três crucificados o primeiro a exalar o último suspiro: Vieram, pois, os soldados e quebraram as pernas ao primeiro e ao outro que com Ele fora crucificado. Tendo vindo depois a Jesus, como viram que estava já morto, não Lhe quebraram as pernas (João XIX-32 e 33). Pelo menos durante três horas, o bom ladrão, ajudado pela graça, perseverou nas suas boas disposições, aceitando com resignação as suas dores, por ele mesmo consideradas bem merecidas; isto influiu na sua salvação porque, se depois de justificado por Cristo, caísse no desespero, não poderia salvar-se. Foi precisamente prevendo na sua ciência infinita que, uma vez recebido o perdão e tornado um justo, ele passaria a agir como um justo, que Cristo lhe disse: Hoje serás comigo no paraíso (Lucas XXIII-43).
Nós, católicos, vemos algumas vezes estes casos especialíssimos da misericórdia divina em que um pecador se arrepende e se converte nos últimos momentos. Deus lhe dá a graça santificante e, como não há mais tempo para que este pecador tornado justo Lhe mostre sua submissão pela observância da lei de Cristo e pelas boas obras, Deus se contenta com a intenção, em que está, de praticar os mandamentos e fazer o bem, pois Deus não é como nós que só vemos as obras, Ele conhece perfeitamente os mais profundos segredos dos corações.
Mas tirar daí a conclusão de que as nossas obras são inúteis para a salvação seria um grande absurdo. Bem como seria a maior das loucuras querer deixar o arrependimento para o instante final, porque muitos morrem repentinamente, sem ter tempo para arrepender-se e mesmo porque sendo o arrependimento uma graça de Deus, arrisca-se quase infalivelmente a não recebê-la, quem por malícia e cobardia, só por livrar-se de servir a Deus durante a sua vida, pretendesse deixar a conversão para os momentos finais da existência. Como diz um piedoso autor, a Escritura só fala de um caso de conversão na hora da morte, o do bom ladrão: fala de um, para jamais cairmos no desespero; fala de um só para não nos iludirmos, caindo na temeridade. Porque a regra geral, com muitos poucas exceções, é esta: Talis vita, finis ita. Assim como é a vida do homem, assim é também o seu fim.
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