A Paixão
Jesus Cristo: Pintura de Giotto na Capela Scrovegni Pádua - ITÁLIA |
Todos os dias durante o santo sacrifício convido-te, a ti e a teus fiéis, para virdes junto da minha cruz, e ali recordar-te as angústias que sofreu o meu divino Coração, as espantosas torturas e as humilhações infinitas que aceitei para te livrar da morte eterna e dar-te a vida.
Oh, como é para mim doloroso ver as minhas igrejas quase desertas, enquanto se desenrolam todos os dias as pungentes cenas da tragédia do Calvário!
E tu mesmo, meu sacerdote, assistes talvez a elas sem emoção, e fazes as cerimônias com uma precipitação e uma irreverência, que no meu Coração tiveram bem doloroso eco!
Por ordem de meu divino Pai a angústia, o temor e a tristeza invadiram o meu Coração.
Oh, como me senti só e estranho sobre a terra, sem amigos verdadeiros, no meio de homens perversos, sensuais e ingratos!
Como suspirava pelo Céu, pela casa de meu Pai, pela companhia dos anjos, santos e puros, pela união amorosa com o meu divino Pai!
Mas vi o seu rosto irritado pelos pecados com que me apresentava coberto e fui repelido. Mandou-me de novo à terra e conduziu-me a um medonho deserto, sem caminhos e sem água, e ali deu-me ordens de estar, na cruz, humilhado e desprezado.
O terror apoderou-se do meu Coração e lançou-me em espantosas angústias. Tremia à vista dos cruéis flagelos que iam lacerar a minha carne, dos espinhos compridos que deviam perfurar a minha cabeça, e dos cravos que transpassariam as minhas mãos e os meus pés.
Vi com espanto aparecer os indignos e cruéis carrascos que me maltratariam escarnecendo-me e me escarrariam no rosto, e os fariseus hipócritas que me insultariam a caminho do Calvário, até mesmo nas agonias da morte.
O meu Coração confrangeu-se de espanto considerando a minha Mãe Imaculada exposta, por minha causa, às zombarias e aos grosseiros insultos da populaça.
Coroação de espinhos: pintor Anton van Dyck |
Vi-me coberto com o roupão de insensato no palácio de Herodes, desnudo de todos os meus vestidos e exposto ignominiosamente aos olhares de multidão escarnecedora e sensual, ridicularizado como rei de espetáculo no corte de Pilatos, tido por mais vil que Barrabás e suspenso num patíbulo entre dois facínoras. E, pendente da cruz, o próprio Satanás lançou-me o seu desafio dizendo: "Se tu és o Filho de Deus, desce da cruz. Salvou os outros e não pode salvar-se a si mesmo".
Vi-me como que submerso num mar de pecados. Os crimes dos homens, quais vagas tumultuosas, cobriram-me de toda a parte. Abismado na minha confusão não ousava levantar os olhos ao meu Pai três vezes Santo, nem pedir-lhe que me livrasse de tantos opróbrios.
Estava triste, triste até morrer, por causa dos inúmeros crimes e torpezas sem conta, cujo peso, eu, o Filho de Deus, levava, e que ultrajavam e irritavam o meu Pai muito amado.
O meu Coração confrangeu-se de dor ao verificar a esterilidade dos meus sofrimentos para um grande número de almas, vendo o abandono dos meus próprios apóstolos, a negação de Pedro, a traição e perdição de Judas.
Nossa Senhora ao pé da Cruz Pintor: Anton von Dyck |
Estava triste não vendo em volta de mim ao pé da cruz senão um pequeno grupo de almas compassivas. Era aquilo toda a minha Igreja, o fruto de tantas fadigas, a recompensa de tantos benefícios, o resultado de tantos milagres!
A aflição inundou o meu Coração pensando na minha pobre Mãe junto da cruz. Na véspera, as despedidas destroçaram o seu coração como o meu, e o pensamento da sua angústia não me abandonou mais, até à morte.
Presente ao meu suplício, via bem claramente que era por ela que eu sofria mais que por todos os outros juntos, que sem os méritos dos meus sofrimentos previstos ela não seria a Imaculada. Sabia que, se eu a não tivesse amado tanto, não teria tanto que sofrer. Julgava-se, portanto, a causa das minhas dores, verdugo do seu próprio Filho. Via-se na necessidade de desejar ver-me sofrer e este desejo esmagava o seu coração maternal.
A piedade de Filho fez com que eu fixasse sobre ela, de pé junto da cruz, um prolongado e doloroso olhar. E este olhar, velado já pelas sombras da morte, penetrou até à medula a sua alma, sem nunca mais o poder afastar de si.
E enquanto a minha alma estava assim de todo oprimida, um oceano de sofrimentos corporais invadia todo o meu ser.
A minha carne estava lacerada por unhas de ferro, a minha cabeça atormentada por cruéis espinhos, as minhas mãos e os meus pés trespassados com cravos, os meus ombros martirizados pela pesada cruz, os meus joelhos sangrentos pelas repetidas quedas, os ossos deslocados, os músculos enervados, a língua ressequida por uma sede cruel.
O meu corpo humano era uma harpa misteriosa, maravilhosamente delicado e sensível à dor. A onipotência divina tinha-se deleitado em afinar este instrumento para o fazer vibrar ao menor contato com o sofrimento. O próprio Deus, fazendo violência ao seu Coração paternal, reservou-se a incumbência de tocar todas as suas cordas arrancando-lhes, sem piedade, todos os acordes da dor.
Sob a sua ação inexorável, mas justa, todas as fibras do meu corpo se abalaram em gemidos, e estas vibrações, como ondas dolorosas, passaram e repassaram todo o meu ser, propagando-se e repercutindo-se até ao infinito.
Com a alma invadida de mortal angústia e com o corpo martirizado pelos sofrimentos, escarnecido dos meus inimigos, abandonado pelos meus, agonizante de vergonha e de dor, levantei ainda os olhos ao meu Pai, rogando-lhe que se compadecesse do seu Filho e que mostrasse à minha Humanidade esmagada o seu rosto paternal.
Mas a resposta do justo Juiz foi terrível. O Deus três vezes Santo, vendo-me ainda coberto com a lepra afrontosa dos pecados de toda a humanidade, retirou de mim o seu rosto e senti-me abandonado do meu próprio Pai...!
Eu aceitei esta suprema desolação para que os meus irmãos não se vissem dele separados e, inclinando a cabeça, morri nas angústias da mais extrema dor.
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