quinta-feira, 29 de novembro de 2012

"PRO MULTIS" NA FORMA DA CONSAGRAÇÃO DO VINHO

 Como vimos no post anterior, na consagração do vinho emprega-se a expressão "qui pro multis effundetur". Pergunta-se qual é a tradução correta: ou "que será derramado por muitos, ou "que será derramado "por todos"?
 Primeiramente devemos observar que esta expressão não foi introduzida entre as palavras de Nosso Senhor na forma da consagração do vinho, como foi o caso da expressão "mysterium fidei", mas tirada tal qual das Sagradas Escrituras, como já o provamos. 
  A expressão "pro multis" é tirada da Tradução da Bíblia feita por São Jerônimo (começou a tradução  em 390 e a terminou em 405). E a célebre Vulgata, que tem toda aprovação da Santa Igreja. São Jerônimo ajuntou uma grande quantidade de livros, formando uma valiosa biblioteca. Já conhecia muito bem o latim e o grego e procurou conhecer as línguas hebraica e aramaica (línguas em que Jesus falou) fazendo-se aluno dos rabinos, que iam ensinar de noite, pagando por alto preço as suas lições. São Jerônimo passou na gruta de Belém 35 anos, rezando, fazendo penitência e estudando as Sagradas Escrituras. Em 2000 tive a graça de celebrar a Santa Missa naquela gruta, ou melhor dizendo na gruta reconstruída naquele mesmo local. Que São Jerônimo me ilumine em meus estudos bíblicos!
  Perdoem-me a digressão! E, com a graça de Deus, continuemos o assunto proposto. 
  São Jerônimo não fez outra coisa senão traduzir literalmente o que estava nos originais aramaico, hebraico e grego. Tenho o grego e lá está  "perí pollón, cuja tradução literal é "pro multis" (Latim) e "por muitos" (Portugês). A Hermenêutica ensina-nos a estudar as passagens paralelas ou análogas. É o que vamos fazer, com a graça de Deus e a ajuda de São Jerônimo. 
  Pois bem! há muitas passagens referentes a este assunto de que tratamos no presente post. Comecemos pelo Antigo Testamento, ou seja, pela profecia de Isaías, LIII, 12: "Por isso eu lhe darei por sorte uma grande multidão e ele (o Messias) distribuirá os despojos dos fortes porque entregou a sua vida à morte, foi posto no número dos malfeitores, tomou sobre si os pecados de muitos e intercedeu pelos pecadores". 
  É dito "peccata multorum", isto é, "tomou sobre si os pecados de muitos". No estudo exegético aprendemos pela interpretação dos Santos Padres que "muitos" aí significa "todos". Na verdade, Jesus morreu pela salvação de todos, sem excluir ninguém, embora sabemos que nem todos se salvam, justamente porque rejeitam o Sangue divino que Jesus derramou também em prol deles. . São João na sua 1ª Epístola, II, 2 diz: "Ele (Jesus Cristo) é propiciador pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo". E São Paulo na sua !ª Epístola a Timóteo, II, 6 diz: "O qual (Jesus Cristo) se deu a si mesmo para redenção de todos". 
 Mas há ainda muitas outras passagens da Sagrada Escritura em que se emprega "muitos", (em grego= pollói), e não "todos". Por exemplo, eis algumas passagens de São Paulo: Epístola aos Romanos, V, 15 e segs : "Mas o dom não é como o delito, porque, se pelo delito de um (Adão) morreram muitos, muito mais a graça de Deus e o dom são, pela graça de um só homem, Jesus Cristo, abundantemente espalhados sobre muitos... (19) "Porque, assim como pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim pela obediência de um só, muitos virão a ser justos". Antes de citarmos outra passagem, expliquemos esta. Baseio-me na explicação feita pelo Padre Jesuíta Prat, que foi membro da Comissão de Estudos Bíblicos, e escreveu o Livro mundialmente célebre "LA THÉOLOGIE DE SAINT PAUL. Neste livro T. I p.515 e 516: Diz Prat que São Paulo quer demonstrar duas coisas: 1- Como Adão pôde nos perder, assim Jesus Cristo poderá nos salvar; 2 - Se Adão por seu pecado nos constituiu pecadores, muito mais Jesus Cristo, por sua justiça, poderá constituir-nos justos. Toda exposição de São Paulo visa mostrar uma única causa que produz múltiplos efeitos. Assim: Um só homem prevarica... Todos os homens são condenados. Um só autor da justiça... Todos os homens são justificados. (V.19) Um só homem desobediente... Um grande número constituídos pecadores. Um só homem obediente... um grande número constituídos justos.
 "O que nós traduzimos por um grande número corresponde em grego "oi pollói" (=os muitos). Diz Prat que, na verdade esta expressão é muito difícil de ser traduzida e diz que "todos" não seria uma tradução mas o resultado de um comentário. Assim conclui: "É evidente, que aqui como em outros lugares (p.ex. Heb., IX, 28) São Paulo quer dizer "todos", mas não é a ideia de totalidade que põe em relevo, mas a "multiplicidade" enquanto se opõe à unidade. O sentido seria: Um só morre por todos os demais, seja qual for o número destes demais.
  Na  Epístola aos Hebreus, IX, 28, São Paulo diz: "...Assim também Cristo se ofereceu uma só vez para apagar os pecados de muitos". Vimos a explicação logo acima: quer dizer "todos" colocando em destaque a multiplicidade em oposição à unidade.
  Jesus Cristo na Cruz, coadunou em torno de si a multidão dos homens passados, presentes e futuros; imolou-se como Cabeça da humanidade, e, por ser Ele Deus, o seu sacrifício expiou todos os crimes, desde o pecado de Adão até o último pecado do derradeiro homem. Deus ofendido se abrandou e a ordem perturbada foi plenamente restaurada. É o que exprime São Paulo na Epístola aos Hebreus, V, 1-10. E o Papa Pio XII, na Encíclica "Mediator Dei", nº 73, 74, assim explica: "Este resgate, porém, não surte imediatamente o seu pleno efeito (...) Para que todos os pecadores se purifiquem no Sangue do Cordeiro, é necessária a colaboração dos fiéis. Efetivamente conquanto Cristo, falando dum modo geral, tenha, por meio de sua morte cruenta, reconciliado com o Pai todo o gênero humano, quis todavia que todos se aproximassem e fossem trazidos à Cruz, sobretudo pelos Sacramentos e pelo Sacrifício Eucarístico, para poderem conseguir os frutos salutares que na Cruz alcançou... Pode dizer-se que Cristo construiu sobre o Calvário uma piscina purificadora e salutar e a encheu com o seu  próprio Sangue; mas se os homens não mergulham naquele banho para lavar as manchas da sua iniquidade, não podem, evidentemente, ser purificados e salvos".
  É, portanto sobretudo pelos Sacramentos e pelo Sacrifício Eucarístico que as almas se beneficiam dos méritos infinitos do Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo derramado em sua Paixão e Morte. E o caráter expiatório do Santo Sacrifício da Missa está bem indicado pelas palavras mesmas da instituição: a hóstia é o Corpo entregue por vós, o cálice é o Sangue derramado em remissão dos pecados.
  São beneficiários do sacrifício da Cruz todos os membros do Corpo Místico de Jesus Cristo - aqueles que o são de fato porque foram incorporados n'Ele pelo batismo, e aqueles que o são de direito, isto é, todos os homens que, embora não tendo recebido o batismo, são chamados a recebê-lo. Só os condenados, portanto, ficam excluídos, porque estes estão irrevogavelmente separados do Salvador. Por condenados entendemos os que já faleceram e foram para o inferno. Porque os que vão se condenar(e só Deus o sabe) a estes Deus dá todas as graças suficientes para a salvação até o último instante. Se condenam justamente porque não quiseram se banhar no Sangue do Cordeiro. E assim a graça que era suficiente não foi eficaz por culpa deles mesmos.
  Portanto, todos são chamados (inclusive as almas do purgatório) a tirar proveito do santo sacrifício da Missa. Na Igreja primitiva, esta verdade era inculcada nos fiéis pela recitação de orações, variáveis segundo as diferentes categorias sociais, às quais se associavam os assistentes com o amen final. O mesmo se faz  ainda hoje na Sexta-Feira Santa, depois do canto da Paixão. Hoje, no entanto, para que a Missa se tornasse mais breve, foram suprimidas essas longas orações, embora se tenha conservado o espírito, oferecendo-se explicitamente a hóstia santa não só por todos os cristãos, mas por todo o mundo: "Nós Vos oferecemos, Senhor, o cálice da salvação, suplicando à vossa bondade que o faça subir como um perfume de suavidade à presença da vossa Majestade, pela nossa salvação e pela SALVAÇÃO DE TODO O MUNDO. (Ofertório, oblação do cálice). Também na oblação do pão e no Momento dos vivos o celebrante reza por todos.
  Como já vimos no post anterior, os Evangelistas São Mateus e São Marcos relatando a instituição da Santíssima Eucaristia na última Ceia, na fórmula da consagração do vinho, empregam a expressão "pro multis". Por tudo o que acabamos de explicar, não será difícil perceber qual o significado desta expressão que, repetimos mais uma vez, é tirada das Sagradas Escrituras e assim está nos originais.
   Mas, demos a palavra ao Doutor Angélico, a quem Jesus se dignou aparecer para dizer-lhe: "Tomás, você falou muito bem de mim na Eucaristia, que recompensa queres? Respondeu o Santo: "Senhor, a Vós, só  a Vós! Santo Tomás aprendeu muito mais colocando a cabeça no Sacrário, do que se debruçando sobre os livros. Mas, afinal, vamos ouvi-lo: Suma Teológica, 3ª Parte, q. LVIII, a. 3:
  Santo Tomás formula a objeção e depois responde. Objeção: "A Paixão de Cristo, como se disse, quanto à sua suficiência, aproveita a todos; mas, quanto à sua eficiência, aproveita a muitos. Logo, a forma (na consagração do vinho) devia ser - será derramado por todos, ou por muitos, sem se acrescentar - por vós.
 Resposta: Primeiramente devemos dizer que a Igreja, instruída pelos Apóstolos, usa essa forma na consagração do vinho.( Segundo Santo Tomás, isto já seria suficiente para rejeitar qualquer objeção). Mas apresenta a SOLUÇÃO  e depois dá a resposta. "Donde devemos concluir, que todas as palavras referidas são da substância da forma. Mas as primeiras - "Hic est calix sanginis mei", - significam a conversão mesma do vinho no sangue, do mesmo modo que referimos na forma da consagração do pão. As palavras seguintes designam a virtude do sangue derramado na Paixão, que obra neste sacramento. As quais têm um tríplice fim - (...) O terceiro: para remover os pecados que são impedimentos à herança eterna e à justificação da graça. segundo aquilo do Apóstolo: O sangue de Cristo alimpará a nossa consciência da obras da morte, isto é, dos pecados. E por isso se acrescenta: Que será derramado por vós e por muitos para remissão dos pecados". 
  "O sangue, responde Santo Tomás à objeção, da Paixão de Cristo não só tinha eficácia para os judeus eleitos, por quem era derramado o sangue do Testamento Velho, mas também para os gentios (que eram todos os demais povos). Nem só para os sacerdotes, que celebram esse sacramento, ou para os que o recebem, mas também para aqueles por quem é oferecido. Por isso diz a forma sinaladamente - por vós, isto é, os judeus; e - por muitos, isto é, pelos gentios ( a multidão dos demais povos); ou - por vós, isto é,  os que comungais, e  - por muitos por quem é oferecido"
 
  O Padre Prat na seu Livro "LA THÉOLOGIE DE SAINT PAUL"  t. I, p. 149, faz uma pergunta muito importante: "As alusões ao sacrifício, nas diversas fórmulas de consagração, se referem ao sacrifício da Cruz ou ao sacrifício do Altar? Seria forçoso aceitar sem dúvida a primeira alternativa se o futuro  empregado pela Vulgata traduzisse exatamente o texto original. Mas, na verdade, o grego emprega o presente. Então diz Prat: "É preciso admitir que as alusões ao sacrifício visam diretamente o sacrifício do altar e não ao da cruz". 
  É evidente que indiretamente se refere ao Sacrifício da Cruz, porque o Sacrifício do Altar depende inteiramente do Sacrifício da Cruz.

  Ora, quanto ao Sacrifício da Cruz sabemos que Jesus Cristo entregou seu Corpo à Paixão e Morte e derramou todo seu Sangue para a salvação de todos. Sabemos, outrossim, que o Santo Sacrifício da Missa é para aplicar os merecimentos infinitos de Nosso Senhor adquiridos pelo Sacrifício da Cruz.
 
  Então formula-se uma pergunta cuja resposta definirá toda a questão: Que ensina a Sagrada Teologia sobre a aplicação da Santa Missa? É oferecida só aos eleitos, entre os judeus (por vós) e aos eleitos entre os gentios (por muitos) ou é oferecida por todos, embora nem todos as aproveitem e as tornem eficazes? Daremos a resposta no post seguinte, se Deus quiser.
   Observação: Em parte, já respondemos acima . Vamos dar argumentos da Teologia. 

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