DA JUSTIÇA E DA
MISERICÓRDIA DE DEUS
"O Senhor é justo e ele ama a justiça" (Salmo X, 8)
"A misericórdia e a verdade (=justiça) se
encontraram; a justiça e paz (=misericórdia) se oscularam" (Salmo
LXXXIV, 11).
"O Senhor é misericordioso e compassivo" (Salmo CX, 4) e
"O Senhor é compassivo e
misericordioso, paciente e de muita misericórdia" (Salmo CII, 8).
"Todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade
(=justiça)" (Salmo XXIV, 10).
Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica, 1ª Parte, q. XXI
fala sobre a Justiça e a Misericórdia de Deus em quatro artigos e prova: 1º
Que em Deus há justiça; 2º - Que a sua justiça pode se chamar verdade;
3º - Que em Deus há misericórdia; 4º - Que em todas as obras de Deus há justiça
e misericórdia.
Resumirei num só artigo estas teses que o Doutor Angélico
prova respectivamente com os textos das Sagradas Escrituras acima enunciados.
!º - DEUS É JUSTO: "O Senhor é justo e Ele ama a
justiça". Há dupla espécie de justiça. Uma que consiste no mútuo dar e
receber; p. ex. a que existe na compra e venda e em tratos e trocas
semelhantes. É a justiça chamada comutativa.
Esta não existe em Deus segundo aquilo que diz São Paulo: "Quem lhe deu alguma coisa primeiro,
para que tenha de receber em troca" (Romanos XI, 35). A outra justiça
é chamada distributiva. É aquela pela
qual um governante ou administrador dá segundo à dignidade de cada um. Ora,
assim como a ordem devida, na família ou em qualquer multidão governada,
demonstra a justiça do governador, assim também a ordem do universo manifesta,
tanto nos seres naturais, como nos dotados de vontade, a justiça de Deus. Assim
diz São Dionísio: "Devemos ver a verdadeira justiça de Deus no distribuir
ele a todos os seres segundo o que convém à dignidade da cada um, e no
conservar cada natureza na sua ordem própria e virtude". Deus só pode
querer aquilo que está na razão da sua sabedoria; e esta é como a lei da
justiça, pela qual a sua vontade é reta e justa. Por onde, o que faz por sua
vontade, justamente o faz; assim como nós fazemos justamente o que fazemos de
acordo com a lei; nós, porém, pela lei de um superior, ao passo que Deus, pela
sua própria lei. Diz Santo Anselmo: "Deus é justo punindo os maus, por
isso lhes convir ao que eles merecem; mas também Deus é justo perdoando-lhes,
por convir isso a sua bondade. A justiça
é da essência de Deus. E o que é da essência de Deus também pode ser princípio
de ação.
2º - A JUSTIÇA DE DEUS É VERDADE: "A misericórdia e a verdade se encontraram". Explica
Santo Tomás que aqui VERDADE é tomada na acepção de JUSTIÇA. Verdade é a
adequação da inteligência com o objeto. Ora, o intelecto que é causa do objeto
é dele a regra e a medida; dá-se, porém, o inverso com o intelecto, que tira
das coisas a sua ciência. Portanto quando as coisas são a medida e a regra do
intelecto, a verdade consiste na adequação deste com aquelas, e tal é o nosso
caso. Assim, a nossa opinião e o nosso conhecimento são verdadeiros ou falsos
conforme exprimem o que a coisa é ou que não é. Mas, quando o intelecto é a
regra ou a medida das coisas(como em Deus), a verdade consiste na adequação
delas com o intelecto. Deus é a própria verdade; daí dá a cada um o que
realmente lhe é adequado, isto é, o que corresponde à verdade. Por onde a justiça de Deus, que constitui a
ordem das coisas, conforme à ideia da sua sabedoria, que lhes serve de lei,
chama-se convenientemente VERDADE. Resumo ainda mais com uma palavra da Bíblia:
"Todas as obras de Deus são
perfeitas e cheios de equidade os seus caminhos. Deus é fiel, e sem nenhuma iniquidade;
Ele é justo e reto" (Deut. XXXII, 4). Deus é a própria Bondade e, por
outro lado, é onisciente, perscruta os corações e os rins: donde premia ou
castiga segundo a verdade, a equidade. Em Deus, pois, justiça é verdade. Nos
homens, nem sempre e muitas das vezes a justiça humana é injusta (se assim me
permitam a contradição nos termos). É como teia de aranha: pega os pequenos
insetos e deixa passar os besouros. (Vê-se com facilidade que estas últimas
palavras são minhas e não do Doutor Angélico).
3º - EM DEUS HÁ MISERICÓRDIA: "O Senhor é misericordioso e compassivo". A misericórdia
máxima devemos atribuí-la a Deus; mas, quanto ao efeito e não, quanto ao afeto
da paixão, porque em Deus não há paixão. Para entender isso melhor é mister
considerar que misericordioso é quem possui coração cheio de comiseração, por
assim dizer, por contristar-se com a
miséria de outrem, como se fora própria e esforçar-se por afastá-la como se
esforçaria por afastar a sua própria. Tal é o efeito da misericórdia. Ora, Deus
não pode ficar triste. Mas, sendo a própria bondade e onipotente, pode afastar
a miséria, entendendo por miséria qualquer defeito. Pois, defeitos não se
eliminam senão pela perfeição de alguma bondade. Ora, Deus é a origem primeira
da bondade. Devemos porém ponderar que comunicar perfeições à coisas pertence
tanto à bondade divina, como à justiça, à liberalidade e à misericórdia, mas
segundo razões diversas. Assim, a comunicação das perfeições, considerada
absolutamente, pertence à bondade, Pela justiça, Deus comunica perfeições
proporcionadas à coisas. Pela liberalidade Deus dá perfeições, não visando a
sua utilidade, mas só por mera bondade. Finalmente, pela misericórdia, as
perfeições dadas à coisas por Deus eliminam-lhes todos os defeitos.
Deus age misericordiosamente, quando faz alguma coisa, não
em contradição com a justiça, mas, além dela. Assim quem desse duzentos reais
ao credor, ao qual só deve cem, não pecaria contra a justiça, mas agiria
misericordiosamente. O mesmo se daria com quem perdoasse a injúria, que lhe foi
feita. Devemos concluir que, longe de suprimir a justiça, a misericórdia é a
plenitude dela. Donde dizer a Sagrada Escritura: "A misericórdia triunfa
sobre o juízo" (S Tiago II, 13).
4º - HÁ JUSTIÇA E MISERICÓRDIA EM TODAS AS OBRAS DE DEUS: "Todos
os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade (=justiça). Necessariamente
descobrimos, em qualquer obra de Deus, a misericórdia e a verdade(=justiça); se
tomarmos misericórdia no sentido de remoção de qualquer defeito. embora nem
todo defeito possa chamar-se miséria, propriamente dita, mas somente o defeito
da natureza racional, que é capaz de felicidade; pois a esta se opõe a miséria.
E a razão dessa necessidade é a seguinte. Sendo o débito
pago pela divina justiça um débito para com Deus ou para com alguma criatura,
nem um nem outro podem faltar em qualquer obra divina. Pois, Deus nada pode
fazer que não convenha à sua Sabedoria e à sua Bondade; e, nesse sentido,
dizemos que algo lhe é devido. Semelhantemente, tudo quanto faz nas criaturas,
o faz em ordem e proporção convenientes, e nisso consiste a essência da
justiça. E, portanto, é necessário haja justiça em todas as obras divinas.
Mas a obra da divina justiça sempre pressupõe a da misericórdia
e nesta se funda. Pois, nada é devido a uma criatura, senão em virtude dum
fundamento preexistente ou previsto; o que, por sua vez pressupõe um fundamento
anterior. Ora, não sendo possível ir até o infinito, é necessário chegar a
algum que só dependa da bondade da divina vontade, que é o fim último. Assim,
se dissermos, que ter mãos é devido ao homem, em virtude da alma racional, por
seu lado, ter alma racional, é necessário para que exista o homem e este existe
pela bondade divina. E assim a misericórdia se manifesta radicalmente em todas
as obras de Deus. E a sua virtude se conserva em tudo o que lhe é posterior, e
mesmo aí obra mais veementemente, pois a causa primária mais veementemente
influi, que a segunda. Por isso, Deus, pela abundância da sua bondade, dispensa
o devido a uma criatura mais largamente do que o exigiriam as proporções dela.
Porque, para conservar a ordem da justiça, bastaria menos do que o conferido
pela divina bondade, excedente a toda a proporção da criatura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário