52. BONITO COMEÇO... (a)
A outra observação que vem a talho de foice é esta: Que bonita estreia para a teoria do livre exame!
Os protestantes costumam celebrar o gesto de Lutero rompendo com a Interpretação tradicional da Igreja e estabelecendo o princípio do livre exame: cada um tem o direito de fazer também a interpretação da Bíblia - como sendo uma verdadeira libertação. A Igreja estaria querendo monopolizar a interpretação para impor suas teorias errôneas (!!). Lutero então teria aberto o caminho para se chegar à interpretação verdadeira. Esta é a versão protestante.
Vejamos agora como as coisas se passaram.
Lutero, como vimos, tomou como ponto de partida de sua doutrina o princípio de que O HOMEM NÃO É LIVRE NAS SUAS AÇÕES, NÃO POSSUI O LIVRE ARBÍTRIO.
Ora, se há uma verdade que transparece em todos os capítulos da Bíblia Sagrada, desde as primeiras páginas do Gêneses em que Adão e Eva são chamados à responsabilidade pela sua desastrosa desobediência, até a última página, o último capítulo do Apocalipse em que se lê: "Eis aqui que depressa virei, e o meu galardão anda comigo para recompensar a cada um segundo as suas OBRAS (XXII-12) - é a noção da liberdade do homem, a ideia de que ele pode dispor de seus atos.
Ao próprio Caim, que a muitos poderia aparecer como sujeito à fatalidade de uma maldição, Deus se mostra dizendo que ele é livre e bem pode vencer suas tentações: "Por que anda tu irado? e por que se descaiu a tua face? Porventura, se tu obrares bem, não receberás recompensa? e se obrares mal, não estará logo o pecado à porta? Ma a tua concupiscência estar-te-á sujeita e tu dominarás sobre ela "(Gêneses IV-6 e 7).
São inúmeras as passagens da Bíblia em que Deus nos aparece impondo preceitos aos homens, ameaçando com castigos aos que os transgridem, prometendo galardão aos que lhes obedecem. E se Ele assim o faz, não é para ludibriar dos homens, impondo-lhes mandamentos impossíveis (o que seria indigno da santidade de Deus); se Ele exige, é porque dá graça suficiente para cumpri-los. Se Ele exige, é porque o homem tem à sua mão escolher entre o bem e o mal, entre a recompensa e o castigo.
Assim se lê na Bíblia:
"Este mandamento que eu hoje te intimo, não está sobre ti, nem está longe de ti, nem está no Céu, de sorte que possas dizer: Qual de nós pode subir ao Céu, para que no-lo traga e o ouçamos e o ponhamos por obra? Também não está da banda dalém do mar, para que te desculpes e digas: Qual de nós poderá passar o mar e trazer-no-lo, para que possamos ouvir e cumprir o que se nos manda? Mas esta palavra está muito perto de ti, na tua boca está e no teu coração para a cumprires. Considera que eu te pus hoje diante dos olhos a vida e o bem, e ao contrário a morte e o mal, para que tu ames o Senhor teu Deus e andes nos seus caminhos e guardes os seus mandamentos" (Deuteronômio XXX-11-16).
Josué diz ao seu povo: "Temei ao Senhor e servi-O com um coração perfeito e mui sincero, tirai os deuses a que vossos pais serviram na Mesopotâmia e no Egito e servi ao Senhor. Porém, se vos achais mal com servir ao Senhor, na vossa mão está a escolha: escolhei hoje o que mais vos agradar e a quem principalmente deveis servir, se aos deuses a quem serviram vossos pais na Mesopotâmia, ou aos deuses dos amorreus, em cuja terra habitais; porque eu e minha casa havemos de servir ao Senhor" (Josué XXIV-14 e 15).
Do profeta Ezequiel: "Quando o justo se apartar da sua justiça e cometer a iniquidade, morrerá nesse estado; ele morrerá nas obras injustas que cometeu. E quando o ímpio se apartar da sua impiedade que cometeu e obrar conforme a equidade e a justiça, ele assim dará a vida à sua alma; porque, considerando o estado em que se acha e apartando-se de todas as suas iniquidades que obrou, ele certamente viverá e não morrerá. Depois disto dizem ainda os filhos de Israel: O caminho do Senhor não é justo. Acaso os meus caminhos não são justos, casa de Israel, e não são antes os vossos os que são corrompidos? (Ezequiel XVIII-26 a 29). O Deus das Escrituras não é aquele que é pintado por Lutero e que faz do homem um jumento, cavalgando-o a seu bel-prazer, mas um Deus que, apesar de Todo-Poderoso, respeita a liberdade humana e se queixa amorosamente, amargamente, porque o homem não quis seguir o bom caminho de seus mandamentos, não quis cooperar com a sua graça:
"Agora, pois, habitadores de Jerusalém e varões de Judá, sede vós os juízes entre mim e a minha vinha. Que coisa há que eu devesse fazer à minha vinha que lhe não tenha feito? Far-lhe-ia acaso injúria sem esperar que ela desse boas uvas em lugar das labruscas que só produziu?... Porque a vinha do Senhor dos exércitos é a casa de Israel; e o varão de Judá, o seu renovo deleitável; e esperei que fizesse juízo e eis que só há iniquidade, e que praticasse justiça, e eis que só há clamor" (Isaías V-3, 4 e 7).
Em Jeremias se lê também a queixa de Deus: "Pasmai, céus, sobre isto e ficai em total desolação, portas deles, diz o Senhor. Porque dois males fez o meu povo: deixaram-me a mim, fonte d'água viva e cavaram para si cisternas rotas que não podem reter as águas" (Jeremias II-12 3 13). E alguns versículos mais adiante: "Também os filhos de Mênfis e de Tafnes te afrontaram até ao alto da cabeça. Porventura não te tem acontecido isto, porque abandonaste ao Senhor teu Deus naquele tempo em que te conduzia pelo teu caminho? (Jeremias II-16 e 17).
Lutero sabia que Jesus Cristo era Deus. E que prova mais espetacular da liberdade do homem do que chorando sobre a ingratidão de Jerusalém? É verdade que nessa hora Jesus cavalgava um jumentinho, mas era precisamente porque o homem estava longe de ser como aquele jumentinho que tão facilmente se deixava conduzir, era por causa das resistências do homem à s inspirações da divina graça, que Jesus chorava naquele momento.
Será inútil prosseguir nas citações. Negar a liberdade do homem, depois de tais passagens da Bíblia, afirmar depois disto, como Lutero, que Deus "opera em nós o bem e o mal" seria atribuir a Deus uma farsa inominável. Não pode haver, portanto, doutrina mais contrária ao ensino bíblico do que a negação da liberdade humana; qualquer pessoa que tenha um conhecimento, embora mínimo, das Escrituras, sabe muito bem disto.
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