Artigo do saudoso Gustavo Corção no livro A TEMPO E CONTRA TEMPO, Coleção Permanência, ano 1969
Foi no ano 325 que trezentos bispos da Igreja se reuniram em Niceia para responder definitivamente ao desafio do arianismo. E quando tudo parecia indicar que a heresia penetrava nos vasos capilares da Igreja, e que estavam isolados e em minoria os seguidores da doutrina tradicional que afirmava a divindade do Cristo Jesus, o Concílio proclama solenemente a verdadeira doutrina e anatematiza o erro dos arianos. O pronunciamento tomou o nome de Símbolo de Niceia, e constitui um resumo, uma condensação da verdade revelada, não mais no tom tranquilo e expositivo do Símbolo dos Apóstolos, mas no novo tom exigido pelas procelas da história.
Mais tarde, o Concílio de Constantinopla retomou o texto e deu-lhe nova redação com um desenvolvimento maior relativo à teologia do Espírito Santo. Mas foi somente no século VIII que veio à baila, tempestuosamente, a necessidade de adicionar o termo filioque relativo à processão do Espírito Santo. Foi em 809 que o Concílio de Aix-la-Chapelle consagrou o uso litúrgico que tem até hoje o Credo que rezamos na missa, depois da leitura do Evangelho.
Essas datas, essas reminiscências da história da Igreja passavam-me pela mente, ontem, enquanto lia com emoção e gratidão o Credo que nosso bom Papa Paulo VI pronunciou solenemente no encerramento do Ano da Fé. ( * ) O mundo inteiro ouviu as ressonâncias da grande foz que continuava a longa e viva tradição.
"Credo in unum Deum..." disseram no ano 325 os padres conciliares reunidos em Niceia; "Credo in unum Deum..." diz o Papa Paulo VI no centro de torvelinho de ideias, de lutas, de confusões levantadas dentro da Igreja pelos inimigos internos da Igreja. E o desenvolvimento majestoso da grande oração ao mesmo tempo suplicante e explicativa, impetratória e ensinante, e ao mesmo tempo pacificadora e lutadora, prossegue na mesma linha adotada e fixada há mais de um milênio.
Preocupado com o frenesi e a "inquietação de certos meios" que "se deixam dominar por uma espécie de sede da mudança e da novidade", o Papa fez questão de frisar, de acentuar, de reafirmar que o Credo de Niceia é perfeitamente apto, sem necessidade de retoque, à famosa mentalidade de nosso tempo. E é nisto que se reconhece o dinamismo de constante renovação da Igreja.
Uma coisa é "renovação" e outra é "inovação". Para nós, em todas as passagens mais decisivas da Sagradas Escrituras, novo é sinônimo de íntegro e até de santo, e renovar é sinônimo de restaurar a primitiva integridade. Renovar não é transformar uma coisa em outra, não é substituir uma coisa por outra, é recuperar e voltar ao que a coisa era em sua pureza. A Igreja peregrina, que passa no mundo "entre as aflições dos homens e as consolações de Deus", cobre-se de pó e até de lama, sem que essas manchas penetrem sua substância una e santa.
Renovar é purificar, renovar é limpar. Não digo que a Igreja tenha necessidade intrínseca de penitência e de purificação, ou que ela precise lavar-se naquilo que constitui propriamente o seu ser sobrenatural, encabeçado por Cristo e animado pelo Espírito Santo. Digamos entretanto que precisa purificar e lavar o seu manto, isto é, os sinais exteriores com que passa no mundo.
A grande oração de Paulo VI, no encerramento do Ano da Fé, neste sentido foi um ato de purificação e de renovação. Aí tem o mundo a Santa Igreja como mostrada em sua virginal maternidade, em sua onipotência suplicante: unam, sanctam, catholicam e apostolicam... E aí temos o imenso conforto de saber, de sentir que as grandes verdades que balbuciamos a repeito de Deus não hão de sofrer inflexões e deflexões pelo fato de estarem transistorizados os gravadores de som, e pelo fato de conseguir o homem fazer a análise espectral das estrelas.
Essas coisas afetarão, sem dúvida alguma, o andamento geral da vida humana. Os padres andarão em automóveis e não a cavalo, mas seria um pouco ridículo, um pouco pueril demais, supor que essas coisas viessem modificar a vida profunda da Igreja, e viessem alterar nosso Credo. Fala-se demais em adaptar isto ou aquilo às exigências dos tempos modernos que realmente se tornaram o deus ciumento, o mais ciumento dos deuses.
Ora, o exemplo principal que a Igreja deve dar não é este. Há evidentemente um aspecto exterior da vida da Igreja que se presta a tal adaptação, mas não é essa flexibilidade a nota essencial e principal da Igreja. Ao contrário, a nota principal é a de um testemunho de perenidade, sem o qual não pode viver a alma humana, não apenas para a Fé, mas também para a contemplação natural.
A alma precisa não perder noção de sua fidalguia, de sua transcendência, de sua dignidade. A grande permanência da Igreja, a virgindade da Mãe e Mestra, a integridade e a perenidade são as arestas luminosas que nos permitem, de longe, distinguir das outras casas mal fundadas, a Casa de Deus fundada na Pedra.
E foi este testemunho de perenidade e de transcendente constância que nos deu o nosso Papa Paulo VI quando retomou em Roma de hoje a mesma grande oração que há mais de mil anos todos nós rezamos depois da leitura do Evangelho. E retomou-a não apenas no lugar litúrgico que ainda tem, mas com um desenvolvimento de lição que deu ao texto venerável uma inesperada grandeza.
Lendo a tradução, e através de suas deficiências, parecia-me ouvir o eco de mil abóbodas e de muito mais de mil vozes a insistir, a ensinar, a suplicar, a declarar: Credo in unum Deum Patrem Omnipotentem...
11-7-68
( * ) Transcrevemos em Anexo a íntegra do texto da Profissão de Fé, proclamada por Paulo VI, no dia 30-6-68. (Nota da Editora).
NB. Transcreveremos, se Deus quiser, toda a Profissão de Fé de Paulo VI, em várias postagens seguidas.
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